Quando há uns dias fui à universidade e usei o carro para a viagem, mal arranquei, ligou-se automaticamente o rádio. Tenho-o sempre ligado para tentar perceber como está o trânsito às normais 7h30 quando saio rotineiramente de casa.
Não apaguei o rádio e fui andando com esse burburinho de fundo. Ainda nem há cinco minutos conduzia quando na estação sintonizada surgiu a rubrica sobre o trânsito! E qual não foi o meu espanto quando o locutor diz, simplesmente, “nada há a assinalar de complicações no trânsito de Lisboa e do Porto”. Eram 9h da manhã!… o normal seriam filas e filas!…
A célebre frase do Génesis bíblico, “Crescei e multiplicai-vos, enchei e dominai a terra” (Génesis 1, 28) ganhou hoje mais atualidade que nunca. Possivelmente, esta é a frase mais anti-ecológica que podemos encontrar num Texto Sagrado. Ela foi a base de toda uma postura cultural que nos retirou dos ecossistemas e nos criou o convencimento de estarmos acima, fora deles. A noção de domínio é aqui plena e forte.
Saímos do equilíbrio dos ecossistemas, dominando-os, alterando-os, usando a Terra como simples fonte de matéria-prima e de energia, e hoje somos postos em causa com um dos mais pequenos instrumentos que os equilíbrios naturais criaram, um vírus.
É sempre provocador regressar a uma frase que nos coloca em confronto com os vírus. Recordo a cena que no primeiro filme da trilogia Matrix marca a recuperação, o regresso à ação de Morfeus. Nessa situação em que o herói está quase a sucumbir, o Agente Smith interroga-o. Incapaz de dele tirar alguma informação, ataca com uma afirmação demolidora, comparando o ser humano, a espécie biológica, que Morfeus defende de forma irredutível, a um vírus:
“Vocês vão para uma área e multiplicam-se e multiplicam-se, até que todos os recursos naturais sejam consumidos. A única forma de sobreviverem é indo para uma outra área. Há um outro organismo neste planeta que segue o mesmo padrão. Você sabe qual é? Um vírus. Os seres humanos são uma doença, um cancro neste planeta. Vocês são uma praga.”
É, de facto, curiosa a forma de vida desta espécie que se auto proclamou, não apenas de Sapiens, mas de Sapiens sapiens. Depois da revolução agrícola ter votado muitas das terras férteis para a desertificação por exploração até ao limite, depois da revolução industrial ter levado a uma corrida louca às matérias-primas, tendo desenvolvido formas de colonialismo de que hoje ainda somos herdeiros nos traumas e nos conflitos que temos, estes “duplamente sábios” (Sapiens sapiens) encontram-se ao espelho de um vírus que age exatamente da mesma forma: esgota os recursos e vai para outro lugar fazer o mesmo.
Regresso à minha viagem de carro, numa 2ª Circular vazia. Quanto mais não seja, esta pandemia já nos obrigou a algumas reflexões e a algumas constatações relativas ao trabalho e às deslocações: afinal, é possível ser produtivo e criativo com outro estilo de vida, trabalhando mais em casa, por exemplo.
No day after conseguiremos criar uma nova relação com o nosso planeta, ou vamos, arrogantemente, mostrar ao mundo dos vírus, e restante natureza, quem manda?