Nem nos sonhos mais arrojados, Mark Zuckerberg alguma vez terá pensado que a ideia de negócio que lançou em 2004 haveria de o levar ao Congresso a explicar-se perante parlamentares dos EUA que pretendem saber como é que o «homem mais rico do mundo» vai continuar a esconder-se atrás dos milhões de pobres utilizadores do Facebook. A acusação peca por excesso e defeito. Zuckerberg não é o «homem mais rico do mundo», como um dos representantes do Partido Democrata o apelidou, mas é notoriamente um dos candidatos a humano mais poderoso do mundo, caso alguma vez consiga levar o lançamento da criptomoeda Libra em frente.
Os mercados internacionais já tinham incógnitas de sobra quanto aos efeitos do Brexit na valorização da libra esterlina – mas talvez tenha chegado o momento de juntarem mais uma libra à coleção de anseios. E curiosamente, as duas libras até poderão ter os destinos cruzados: perante a potencial oscilação de valores da libra britânica após o Brexit, não faltará quem sinta a tentação de investir numa moeda virtual, que poderá ser usada em qualquer parte do mundo com acesso à Net, pretende refletir o valor médio de um punhado de divisas de vários países, mas não está sujeita a bancos centrais.
E é aqui que começam os problemas para Zuckerberg. O escândalo Cambridge Analytica, com a extração de dados pessoais para o lançamento de propaganda personalizada nas eleições presidenciais dos EUA e no referendo britânico que ditou a saída do Reino Unido da UE, serviu de confirmação do potencial da maior das redes sociais para gerar curto-circuitos no acesso ao poder. O que valeu a Mark Zuckerberg, em 2018, uma primeira ida ao Congresso dos EUA e ao Parlamento Europeu – sendo esta última tão constrangedora que a única coisa de prestável que se reteve na memória foi o “mea culpa” do empresário, que assumiu que a Facebook não tinha feito tudo o que podia e devia.
Talvez porque nunca tenha sonhado ter um cibernegócio convertido em questão de Estado, Zuckerberg revelou similaridades notórias às de um peixe fora de água a lutar pela vida – mas terá demorado a perceber o que estava em causa. Na verdade, nenhum dos senhores que o inquiriu no Congresso Americano e no Parlamento Europeu quer fechar a maior rede social do mundo. Será mesmo a última coisa que os governantes do denominado mundo democrático querem que aconteça. Porque isso significa um enorme vazio – e facilita a vida ao lançamento de novas redes sociais, com formas de atuação que, no limite, poderão ser bastante mais vergonhosas que a faturação da Facebook com propaganda viral que tem por base notícias de veracidade duvidosa. Sendo assim, é preferível que a Facebook se mantenha de boa saúde – desde que continue a funcionar como um veículo do poder instituído.
A polémica continuou a proliferar nos jornais, mas esse capítulo ficou fechado mal terminaram as audições de Zuckerberg em Bruxelas e Washington. O caso Cambridge Analytica pode dizer respeito à violação da privacidade e ao abuso de dados pessoais, ou até merecer processos de difamação e mentira na praça pública, mas não de fraude eleitoral: nos diferentes países afetados pelo Cambridge Analytica, as pessoas foram livres de votar como entenderam depois de serem influenciadas pelo que leram. É assim em qualquer democracia – mas neste caso, a democracia foi limitada pela manipulação e não pelas “chapeladas” que distorcem resultados ou impedem eleitores de votar. Parece tudo o mesmo, mas não é. É por isso que não se pode anular os resultados das eleições que alegadamente foram influenciadas pela consultora Cambridge Analytica.
Podia ter sido bem pior. Mark Zuckerberg podia ter mandado todos às malvas e procurar refúgio no gigantesco exército de internautas que usam Facebook, Instagram e Whatsapp. Mas não: a Facebook tem vindo a tentar depurar posts mentirosos e criou mecanismos de identificação do financiamento de campanhas políticas. Não é perfeito – mas poderia ser pior, se a Facebook decidisse levar às últimas consequências o direito à liberdade de expressão de todos os que querem acabar com a liberdade de expressão ou com o mundo tal como o conhecemos. O que abriria uma questão filosófica de difícil resolução tanto para juristas como para os adeptos da liberdade.
Passado um ano, a Facebook mudou. Zuckerberg pode ter sido vexado no primeiro embate nos anfiteatros políticos, mas essa questão de “quem influencia o voto de quem” parece perder relevância para boa parte dos mandantes deste Globo quando a Facebook entra em campos que realmente “importam” – como a emissão de moeda. E aí temos o CEO do Facebook de novo a entrar no Congresso para nova audição.
Desde os tempos ancestrais que a cunhagem de moeda é sinónimo de poder. Uma moeda forte dá poder de compra, uma moeda desvalorizada aumenta as exportações; uma moeda demasiado desvalorizada perde o sentido real da economia e por isso vale mais quando os respetivos minérios são derretidos; uma moeda demasiado cara pode limitar-se a seguir uma decisão política ou apenas refletir o estado de uma economia sem paralelo ou valor no mercado internacional. Com mais ou menos variações, estas são as variáveis que qualquer leigo aprendeu ao ler as páginas de economia de um jornal – até ter começado a ler as primeiras notícias das bitcoins. Aí o cenário passou a contar com novas variáveis, como o tempo de mineração (os cálculos para a execução de tarefas) das criptomoedas e a necessidade de escoar dinheiro através das linhas de código do blockchain.
A Libra é uma descendente direta das bitcoins, mas tem como elemento distintivo o facto de ser provavelmente o primeiro projeto de criptomoeda simultaneamente desenhado para funcionar à escala global e ter o beneplácito do poder instituído. E quando Visa e Mastercard surgem na lista de membros da Associação Libra qualquer consumidor é levado a acreditar que a nova moeda vai mesmo avançar – doa a quem doer, mesmo que tenha de passar por cima de bancos centrais e ministros de finanças. Mas a surpresa gerada pelo facto de estes dois nomes grandes da banca americana surgirem como apoiantes da Libra só viria a ser superada pela saída envergonhada que protagonizaram pouco depois.
Mastercard e Visa saíram da Associação Libra porque foram alvo de pressão política ou a pressão política sobre a Libra surgiu porque a Mastercard e a Visa saíram do projeto? É difícil responder – até porque o lóbi está regulamentado e é legítimo de acordo com as leis dos EUA.
Desta vez, Zuckerberg mostrou que já sabe como se comportar em audições de seis horas com pessoas que levantam a voz para fazer perguntas que ora correspondem ao cerne da questão, ora revelam apenas ignorância. E daí soube-se que a Libra, caso venha a ser lançada em 2020 como previsto, deverá ter como principal referência o dólar americano, apesar de pretender refletir outras divisas também; e nunca deverá trair os desígnios e a legislação dos diferentes países (em especial dos EUA), apesar de a Facebook não ter como migrar a sede que a Associação instalou legalmente na Suíça. A nova moeda deverá ser sujeita aos ditames dos reguladores no que toca a cotações, identidade dos utilizadores e lavagem de dinheiro, e os membros da Associação já desistiram da peregrina ideia de repartir dividendos produzidos pela emissão de divisas.
Basicamente, a Libra, tal como a Associação Libra a pensou inicialmente, não vai existir. Esqueçam isso. O que não quer dizer que a Facebook não venha lançar uma criptomoeda – até porque isso permite-lhe ficar com o que realmente quer: o chorudo mercado das transações virtuais através do Messenger, que promete um rude golpe para a PayPal no comércio eletrónico e também pode ajudar a explicar a decisão tomada pelas famosas gémeas antagónicas Visa-Mastercard, quando abandonaram o projeto da nova criptomoeda.
Tal como nas primeiras audições, o próprio Zuckerberg disse estar disposto a respeitar as leis. E mais: pôs a nu a incapacidade dos legisladores ao pedir-lhes que façam leis e regulação para as novas moedas. O projeto Libra depende dessa regulação para crescer ou sucumbir à nascença perante a pressão dos vários Estados que não estão dispostos a passar para a administração de uma multinacional o que antes era matéria da exclusiva competência de bancos centrais, máquinas fiscais, secretários de estado, reguladores, mercados bolsistas, e das reservas de matérias-primas. Nada disso tira a razão a Zuckerberg num aspeto: é bom que os EUA (ou o Ocidente…) pensem em lançar uma nova divisa digital, porque, provavelmente, a China não vai esperar muito mais para lançar algo similar à escala mundial. Quem achar que Zuckerberg ficou aquém das responsabilidades nas audições parlamentares, que tente convocar um empresário chinês para uma audição e descubra as diferenças.