Nas recentes comemorações do 10 de Junho, e na conclusão do seu extraordinário discurso (seria um outro artigo, explicar todas as razões pelas quais o discurso merece esse epíteto), o João Miguel Tavares deixou um desafio à classe política: que esta dê aos portugueses algo em que acreditar.
Houve quem tivesse lido nessa provocação uma espécie de repto a um desígnio nacional, à identificação de um ponto de chegada, de uma causa, de um amanhã por que valha a pena cantar. Só ele pode fazer interpretação autêntica do discurso – ainda que este, uma vez proferido, se autonomize, pelo que não faltará quem dele se quiser apropriar –, mas creio que o repto era um outro, mais fundo, menos simples (não faltam aí desígnios nacionais, tantos quantos os manifestos que pululam pelo nosso espaço público).
Na verdade, li esse desafio como uma constatação, especialmente evidente e penosa no espaço político liberal-conservador: a de que os partidos políticos, no Governo ou na oposição, não têm conseguido conferir um conteúdo inspiracional à sua ação e às suas políticas, a de que em tempos como estes, de incerteza e imprevisibilidade e mudança e rapidez e insegurança, os partidos e o sistema político, mesmo quando empreendem políticas adequadas, não conseguem atribuir-lhes essa vocação inspiracional tão necessária para evitar que as pessoas desaguem em alternativas populistas, irrealistas.
Já escrevi sobre isso, sobre as dificuldades da direita em transformar as suas políticas em inspiração, sobre a insuficiência do discurso das contas certas ou da competitividade e da baixa de impostos, sobre a impossibilidade de construir um discurso político que não toque no quotidiano e nas aspirações das pessoas.
Não se trata de um problema apenas português, quero deixar claro. Pelo contrário, é um problema mais global e que vem de trás. Como tenho dito, desde Thatcher e Reagan que a direita perdeu o caráter inspiracional. E se em tempos de bonança a coisa funciona, em tempos de crise, de bloqueio, em que nos vemos condenados ao nosso contexto de nascimento sem conseguir vencê-lo ou superá-lo, essa falta é letal; sobretudo se essa crise, como sucedeu com a de 2008, for percebida como uma crise do capitalismo.
E a verdade é que essa crise infligiu uma machadada funda na confiança das pessoas no capitalismo, na economia de mercado, na globalização, tudo património ideológico da direita. Foi uma machadada demasiado funda para ficar sem resposta adequada.
Mas ficou, talvez porque a direita se tenha fiado demasiado na insuficiência das alternativas, nos delírios do anticapitalismo. Sucede que as pessoas precisam de algo mais do que isso, do que relatórios e estudos e contas que mostrem à sociedade que não há melhor alternativa ao capitalismo: precisam de sentir que o seu quotidiano, que os seus desafios, que as suas incertezas, têm uma resposta concreta, humana, de sentir que, com trabalho, esforço, mérito, é mesmo possível subir na vida, viver melhor, deixar algo aos filhos.
Tem faltado à direita essa capacidade de tocar no quotidiano e nas aspirações das pessoas, dizia eu. Escrevi há uns meses que qualquer programa político de direita tem de se predispor a criar condições para que cada pessoa seja livre de lutar pelo seu projeto de vida e de felicidade. E foi esse o desafio que mais fundo me tocou no discurso do João Miguel Tavares: a necessidade de construir um projeto político que ofereça aos portugueses um propósito, uma motivação, que vá para além do acerto técnico das suas propostas. Sem isso, o espaço é deixado livre a radicais e populistas, exímios a chegar ao osso da natureza humana, aos medos, às incertezas.
E são muitos os receios das pessoas hoje, um pouco por toda a Europa, num mundo mais global, veloz e imprevisível: pessoas com receio de que a empresa em que trabalham se deslocalize, feche ou seja vencida pelos concorrentes; trabalhadores com medo de que a sua função desapareça, sem saberem o que fazer para se requalificarem; empresários com receio de não terem os recursos humanos ou o enquadramento fiscal adequado para competir; jovens com receio de não estarem a tirar o curso que melhor os prepara; famílias que não sabem se terão a estabilidade para ter outro filho; filhos que não sabem o que fazer para cuidar dos seus pais; uma classe média que se sente cada vez menos média…
Não é possível apresentar uma proposta política vencedora e coerente que não responda a estes receios, que os menorize, ou que os considere autorrespondidos pelo funcionamento do sistema. Mas, mais do que isso, não é possível vencer o debate cultural, social, com a esquerda, sem atravessar, com respostas, com inspiração, este labirinto de receios, propondo algo de alternativo à sedutora ideia de que alguém no Estado velará por nós, cada vez mais consensual se não houver alternativa