Jack Ma talvez não tenha vida pessoal, mas é sem dúvida um caso de sucesso. Antigo professor de inglês sem grandes relações no aparelho de estado, a viver num país hesitante entre a economia estatizada dos antigos países comunistas e a recente euforia capitalista, conseguiu tornar-se o homem mais rico da China, depois de criar o grupo de comércio eletrónico Ali Baba, com financiamento de amigos e entusiastas. Claro que até o mais deslumbrante dos génios não escapa à estupidez. O que no caso de Ma pode resumir-se em três algarismos: 996.
Na menos má das hipóteses, estes três algarismos mais não serão que uma caricatura de uma distopia que nunca chegará ao mundo ocidental – mas na pior delas serão mesmo a nova realidade. E se depender de Jack Ma, não há que enganar: se queremos ter sucesso na vida teremos de trabalhar das 9h00 da manhã às 9h00 da noite durante 6 dias por semana (e daí se denominar essa jornada de trabalho de “996”). O empresário chinês não hesita mesmo em considerar que é uma «bênção» poder trabalhar em 996. Eu dou-lhe toda a razão: se alguém conseguir trabalhar 72 horas semanais continuadamente sem ter um esgotamento, uma depressão, um ataque cardíaco, um divórcio, ou um processo de perda de tutela de menores, provavelmente, é uma pessoa abençoada. E se a «bênção» não lhe for aplicada pela sorte, seguramente que lhe será atribuída pelo patrão – no caso de o patrão ser justo ou benevolente como Ma diz ser.
Recupero um texto que Jack Ma publicou num blogue para consumo interno dos profissionais grupo Ali Baba: «Como é que uma pessoa consegue alcançar o sucesso que deseja sem fazer um extra de esforço e tempo?». A pergunta é obviamente retórica, porque Ma não vê outra resposta possível que não passe por levar alguém a trabalhar mais. Até porque, como recorda o ciberimperador chinês, não faltam por aí trabalhadores que só estão dispostos a trabalhar oito horas por dia. Um argumento que deve dar um jeitão para mandar à cara dos praticantes de 996 que ousam pedir aumentos ou remuneração de horas extraordinárias.
Desenganem-se os mais céticos: apesar de criticado pela imprensa estatal chinesa, Jack Ma não está sozinho nesta versão 2.0 da escravatura. Richard Liu, o arquirrival chinês, que lidera o grupo JD.com, não se perde com quantificações, mas apelida de «preguiçosos» todos os que não trabalham como ele deseja. Tendo em conta que ambos representam a primeira geração de empresários chineses com pretensões à liderança mundial e que sem a indústria chinesa hoje dificilmente teríamos um telemóvel a funcionar, não será de espantar que o regime laboral do 996 possa fazer escol no denominado mundo ocidental.
A questão não é nova: uma das últimas intervenções públicas de Steve Jobs, fundador da Apple, foi precisamente para marcar posição face aos suicídios de jovens operários que produziam iPhones na chinesa Foxconn, em regime de subcontratação. «Entramos naquele local que é uma fábrica, mas, meu deus, eles têm restaurante e salas de cinema, e hospitais e piscinas. Para fábrica, está muito bem», disse em 2011, o malogrado CEO da Apple. Um ano depois, a questão manteve-se na ordem do dia e Tim Cook, sucessor de Jobs à frente da Apple, haveria de fazer uma viagem à China tendo como pano de fundo as condições de trabalho na Foxconn. O termo 996 confirma que, nos últimos anos, o assunto saiu dos títulos de jornais, mas não perdeu a correspondência com a realidade.
O insuspeito Diário do Povo, gerido e controlado pelo governo chinês, não deixou de mostrar desagrado pelos abusos registados na indústria tecnológica chinesa: «Tornar obrigatória a cultura das horas extraordinárias 996 não só reflete a arrogância dos gestores de negócios, como é também injusto e impraticável», defendeu um artigo de opinião publicado no jornal governamental.
Ora, os chineses não são diferentes dos outros humanos – apenas trabalham mais porque talvez não tenham alternativa. E mesmo tendo apenas um punhado de minutos livres por dia, já perceberam o esquema: para que o resto do mundo possa ter telemóveis a 50, 100 ou mil euros, alguém terá de trabalhar 12 horas por dia, seis dias por semana, com salários miseráveis. Pelo que das duas uma: ou o resto do mundo passa a trabalhar em 996, ou não tardarão a surgir os primeiros trabalhadores chineses que concluem que não faz sentido trabalhar assim. Porque a única coisa que farão com sucesso é destruir as respetivas vidas – ou até ajudar a destruir o mundo.
Não sei em que realidade vive Jack Ma, mas não tenho dúvidas de que pertence ao século 20. E a prova disso mesmo é que ainda acredita que trabalhar mais é sinónimo de trabalhar melhor. E prefere ver as tecnologias como um interruptor sempre ligado que mantém os profissionais conectados ao trabalho, como se isso, por si só, significasse um melhor produto final. O que é o contrário do el dorado das tecnologias.
Para trabalhar mais e mais rapidamente, temos as máquinas. É assim desde que a humanidade deixou a manufatura e começou a usar as primeiras máquinas a vapor; e a tendência ficou ainda mais exponenciada com o desenvolvimento de dispositivos que permitem escrever, desenhar, fazer cálculos , ou até comunicam, muitas vezes, sem intervenção humana. O processo tornou-se mais rápido e eficiente – mas não obrigatoriamente mais criativo ou disruptivo.
Não é por acaso que se diz que a maioria dos robôs presta-se especialmente a tarefas arriscadas, repetitivas ou humanamente impossíveis – porque essas tarefas simplesmente não exigem sentimentos ou mundividência. Talvez por isso, vários arautos da inteligência artificial tenham vindo a pintar um futuro próximo em que os robôs deverão assumir grande parte das profissões, pagando impostos para suportarem toda a população.
Se a evolução não seguir nesse sentido, então o setor das tecnologias terá falhado no maior dos seus objetivos. Com uma agravante: se todos trabalharmos 72 horas por semana, então, a humanidade terá de encontrar forma de produzir energia, comida e meios de tratamento de poluição que suportem esse acréscimo de horas de trabalho. O que, em tempos de alterações climáticas, levanta a questão: será que há recursos para tudo isto?
Aos 54 anos, Jack Ma já começou a tratar da sucessão no grupo Alibaba e já não deverá dar-se ao trabalho de responder a essa questão. Mas a “invasão económica” chinesa está em curso – e já não deveremos demorar muito a descobrir. Pelo sim, pelo não, convém não esquecer que, mesmo no “mundo ocidental”, há quem concorde com Ma. Elon Musk, o criador da Tesla e da SpaceX, recorda que chegou a trabalhar 120 horas por semana quando foi necessário. E defende mesmo que «ninguém consegue mudar o mundo a trabalhar 40 horas por semana». Não duvido. Sinceramente, apenas desejo que estas pessoas consigam arranjar uns minutinhos livres para tirarem das caixas os brinquedos que oferecem aos filhos, quando chegam a casa depois de terem mudado o mundo.
Preparado para trabalhar em 996?
Chesnot
«Se a evolução não seguir nesse sentido, então o setor das tecnologias terá falhado o maior dos seus objetivos. Se todos trabalharmos 72 horas por semana, então, a humanidade terá de produzir energia, comida e meios de tratamento de poluição que suportem esse acréscimo de horas de trabalho. Será que há recursos para tudo isto?». A opinião de Hugo Séneca
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