Durante muitos anos as escolas públicas ostentavam na parede, junto ao quadro negro, um crucifixo mesmo ao lado da fotografia de António Salazar, nos tempos em que o país se assumia oficialmente como católico (tal como o presidente do Conselho) “a bem da nação”. Nessa época, para se ser bom português não se podia ter outra identidade religiosa que não o catolicismo romano. Felizmente que a constituição do Portugal democrático (1976) impôs o estado laico, que é a única forma de garantir o princípio da liberdade religiosa a todos, crentes e não crentes.
Em vez de perguntarmos que ligação poderá existir entre religião e escola pública, comecemos primeiro por definir para que serve a escola. Diríamos que serve para preparar as crianças e adolescentes para a vida, sem esquecer as responsabilidades parentais na matéria, que são incontornáveis. Se é assim, então por que razão os alunos não saem da escolaridade obrigatória com o exame do Código da Estrada feito? É que se não vierem a conduzir viaturas ou motociclos serão sempre peões. Porque se hão-de ver obrigados depois a ir pagar a privados para o fazer? Por que razão a escola não confere uma certificação de primeiros socorros ou de suporte básico de vida? E por que não hão-de aprender noções práticas de economia? Ou de sensibilização para as Artes? Será que o aprofundamento de determinadas matérias teóricas é mais importante do que isto?
Se a escola pretende de facto preparar os alunos para a vida poderia igualmente substituir as aulas de religião e moral das confissões religiosas por uma disciplina de Introdução à Religiões e Espiritualidades, que fizesse a abordagem ao fenómeno religioso, sem esquecer as perspectivas agnóstica e ateia. Se, por um lado, as confissões religiosas não precisam da escola pública para catequizarem as camadas mais jovens dos seus fiéis, por outro lado não é suposto que a escola pública se converta num campo de recrutamento proselitista. Num mundo cada vez mais globalizado e numa sociedade tendencialmente mais complexa do ponto de vista religioso como é a portuguesa (segundo comprovam os últimos estudos científicos conhecidos), a responsabilidade do ensino público é preparar os alunos para a vida real e os desafios da contemporaneidade. A cidadania também passa por aqui.
Bem sei que se coloca desde logo o problema da operacionalização da medida, em particular o caso da formação dos professores. Mas se não quisermos continuar com uma escola à medida do século XIX temos que planear o futuro e adaptar o ensino público aos tempos que correm e ao tipo de sociedade que queremos construir, de tolerância e boa convivência entre cidadãos de diferentes filiações religiosas ou sem fé religiosa.
A actual paz social e boa convivência inter-religiosa na sociedade portuguesa não garante nada para o futuro, em especial face aos populismos que se têm vindo a levantar um pouco por toda a Europa, e que, muito provavelmente, mais tarde ou mais cedo também cá chegarão. Se queremos cultivar um futuro clima social de tolerância para com a diferença, de paz e de respeito mútuo, há que começar na escola. Quando, há uns bons anos, se começou a introduzir no ensino básico a educação ambiental, rapidamente se verificou um efeito positivo, que a influência dos princípios ecológicos passaram a ter nos pais dessas crianças e demais familiares, por extensão. É de pequenino que se torce o pepino.
E não me venham dizer que saber ler e escrever (comunicar) é mais importante do que uma educação para a paz e a boa convivência entre cidadãos de etnias, religiões e ideologias diferentes. Ou que a educação sexual (sobretudo sendo controversa quanto à forma) será mais importante do que ser capaz de salvar uma vida através duma intervenção pronta de primeiros socorros. Ou que a álgebra é mais importante do que aprender que não se pode gastar mais do que se ganha. Ou que aprofundar a química é mais importante do que conhecer as leis que regem a circulação viária.
Para que não surjam más interpretações devo esclarecer que considero as ciências, as humanidades e as artes fundamentais na educação contemporânea. Não tenho uma visão determinista da educação, no sentido de preparar apenas os profissionais que fazem falta ao país. Não. A verdadeira educação passa por aprender a pensar, a conhecer o mundo e a história da humanidade. Isso é inegociável. Apenas não deixemos que os alunos abandonem a escolaridade obrigatória sem adquirir competências básicas para a vida. Todos compreendemos que respeitar o ambiente é fundamental mas não mais do que respeitar o outro, o estrangeiro, o imigrante, o diferente ou o que professa outra fé.
A escola pública precisa de uma visão prática de futuro.
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