Há três formas possíveis de descrever Rui Pinto: uma primeira que é de âmbito curricular e que diz que se trata do maior hacker português que alguma vez chegou a ser revelado; uma segunda que o descreve como participante confesso na fuga de informação relativa aos negócios do futebol que é conhecida como Football Leaks; e uma terceira que o designa apenas como «pirata» ou «hacker do «Benfica» – apesar de os advogados de Rui Pinto, em prisão domiciliária em Budapeste na sequência de um mandado de extradição emitido pelas autoridades nacionais, já terem negado a autoria da fuga de informação de 6 GB de e-mails trocados entre elementos da SAD do Benfica.
A primeira e a segunda descrições são factuais, mas estranhamente não colheram grande preferência por quem tem a obrigação de trabalhar, processar e respeitar os factos. Da TVI e Correio da Manhã aos propalados títulos de referência Público, SIC e RTP; do Observador ao Diário de Notícias; da Rádio Comercial ao O Jogo e Record proliferaram as classificações «Pirata do Benfica» ou «Hacker do Benfica» sempre que se tratou de designar o jovem de Gaia. Com que base, razão, motivo, interesse ou objetivo foram tantos os títulos de jornais, TV e rádio que enveredaram por esta descrição – é algo que me escapa. Podia fazer juízos de valor ou intenções, mas estaria a ser injusto ou incorreto com jornalistas de créditos firmados, e por isso apenas posso confessar que não percebo qual a base factual – ou mesmo legal – para o uso do termo «pirata do Benfica» para nomear uma pessoa que já confessou a participação nas divulgações de correspondência conhecidas como Football Leaks, é alvo de uma mandado de extradição por ter divulgado documentos do Sporting e do fundo de investimentos conhecido por Doyen, mas nega a autoria no alegado ataque aos servidores do Benfica.
Ok, aceito que não basta alguém negar a autoria de um crime para ser inocente – mas todos os jornalistas estão obrigados a respeitar o direito à presunção de inocência – e por isso, têm de se referir a potenciais autores de crimes como «suspeitos» ou termo equivalente – mesmo quando o «suspeito» é apanhado em flagrante delito, note-se. Esta regra é válida para violadores, assassinos, ladrões, corruptos e corruptores, burlões ou pedófilos – mas por algum motivo não se aplica a uma pessoa acusada de atacar os servidores do Benfica.
Um camarada mais experiente, que ao longo dos anos arriscou bastante mais pela profissão que eu, deu-me a explicação possível: «o termo Benfica vende, enquanto Football Leaks ninguém sabe o que é» e «é mais fácil para as pessoas perceberem de que pessoa se está a falar». A este argumento junto outro ainda mais plausível: «Pirata do Benfica» ocupa bastante menos carateres que «Hacker do Football Leaks que é acusado pelo Benfica». E isso talvez ajude a explicar por que é que os jornais optaram por «hacker do Benfica» em vez de «hacker suspeito de atacar o Benfica», que é uma designação aceitável, como vi a Tribuna do Expresso fazer.
Antes de os visados e de os doentinhos da bola desatarem a espumar de raiva sobre a minha pessoa, aproveito para inverter os papéis: imaginem que os jornais começavam a mencionar os membros da SAD Benfiquista como acusados ou arguidos do e-Toupeira sempre que eram mencionados num qualquer texto de jornal. Não tenho dúvidas de que seria algo incorreto – até porque tenho obrigação de o saber, pela profissão que mal ou bem vou desempenhando nestas linhas, que a justiça ilibou todos os membros da SAD do Benfica, com a exceção do assessor jurídico Paulo Gonçalves.
Não faltará quem questione como é que o líder daquela que será a maior marca do País, que tem um peso real que quase nenhuma instituição tem em Portugal, que movimenta milhões de euros todos os anos, está cotada em bolsa, tem uma gestão desportiva ao nível das melhores do mundo e tem o poder suficiente para contratar três advogados de topo de firmas rivais para cilindrar as teses do Ministério Público com a mesma classe com que somou campeonatos ao longo de um século, pode alegar, como se fosse um órgão de gestão de uma entidade informal ou amadora, que desconhece o que fazia o assessor jurídico – mas é uma hipótese possível – e tanto é possível que os membros da SAD benfiquista foram ilibados em primeira instância pela justiça. E como mandam o estado de direito e as boas práticas do jornalismo, logicamente a presunção da inocência sobrepõe-se a todas as dúvidas.
Sim, faz sentido que os jornalistas passem a ser um pouco mais criteriosos na informação que vem da SAD do Benfica, tendo em conta que a mesma SAD começou por negar oficialmente a fidedignidade dos e-mails colocados na Internet e que Luís Filipe Vieira alega que não sabia o que Paulo Gonçalves fazia, mas isso não torna legítimo descrever os administradores do Benfica como acusados de algo que a justiça ilibou.
Presumo que o direito ao bom nome também se aplica a quem nem sequer ainda foi formalmente acusado de um alegado ataque aos servidores do Benfica – mas obviamente isso não chega para descansar os sócios benfiquistas que querem que seja feita justiça. E eu dou-lhes toda a razão – só que isso é apenas parte da questão. A justiça que os benfiquistas anseiam é apenas uma parte da justiça que deverá interessar a qualquer estado de direito – e a todos os portugueses.
Por muito que jornais e canais de TV persistam no erro ou dispam-se pruridos deontológicos quando põem a correr uma denominação que interessa essencialmente à tribuna presidencial do Estádio da Luz, Rui Pinto é muito mais do que apenas o «hacker do Benfica». Mesmo que se confirme que é o autor material e/ou moral da fuga de informação dos e-mails dos “encarnados”, o jovem hacker terá sempre de ser tratado como o whistleblower que deu a conhecer, de forma provavelmente ilegal, muitos dos negócios obscuros de alguns dos maiores colossos do futebol mundial – e não só do Benfica. E por isso a denominação correta é hacker do Football Leaks. Precisamente porque, além do Benfica, o hacker faz revelações que podem pôr em causa os dirigentes de Sporting, Porto e muitos clubes e empresários da “bola” da Europa.
Todo este texto pode parecer apenas uma troca de galhardetes entre jornalistas, mas é muito mais que isso. Caso o pedido de extradição seja aceite pelas autoridades húngaras (o que também não dou por garantido), a Justiça Portuguesa passa a ter à sua guarda um dos maiores whistleblowers à escala mundial, que como todos os denunciantes do mesmo calibre, terá, com grande grau de probabilidade, a cabeça a prémio – e dificilmente será benquisto dos governos europeus que, além das relações de proximidade com os clubes, poderão não querer diferendos com claques e outros grupos de pessoas de comportamento imprevisível. E mais: tendo em conta que, alegadamente, Rui Pinto já começou a colaborar com as autoridades francesas, a justiça portuguesa passa a estar no centro das atenções das congéneres e, não menos importante, da opinião pública e dos dirigentes dos maiores clubes nacionais.
Não tenho dúvidas de que Rui Pinto não é um denunciante como os outros – e por isso terá sempre de merecer um tratamento diferenciado se o interesse da justiça for realmente acusar os suspeitos de negócios obscuros no futebol. Resta saber se a justiça portuguesa consegue confirmar que é maior que qualquer clube. E que os títulos de jornais não condenam suspeitos antes do julgamento.