Que me lembre nunca discuti com um irmão meu. Quando muito, quando não estávamos de acordo, calávamo-nos e o outro percebia. Recordo-me de um jantar em casa dos pais em que o Pedro, que nunca gritava, desatou a berrar, já nem sei por que razão. Respondi-lhe com um sorriso
– Diz-me o que te apetecer porque eu nunca me zango contigo
e passados dez minutos estávamos, como de costume, a fazer chichi juntos para a cascata do jardim, no escuro, sentindo as plantas em volta. O Nuno, pelo qual, sei lá porquê, tenho um fraquinho, sempre tive um fraquinho, que quase vi morrer de peritonite, tão pequeno ainda
(– Eu vou morrer e quero o meu paizinho)
o que continua a afligir-me no medo que lhe aconteça qualquer coisa, saiu de mão dada comigo quando foi da missa do João na Basílica da Estrela, a dizer-me baixinho
– Anda bebé anda meu bebé
e eu a sofrer como um danado, ajudado pelos seus dedos subitamente enormes. Eu acho o Nuno lindo, acho todos os meus manos lindos, os nossos pais não se saíram mal. O Miguel, que tem os olhos mais azuis que eu já vi no mundo, tão modesto sempre e que já sofreu tanto com os seus fantasmas interiores, tão discreto, tão bondoso. Manuel, o post scriptum, o que conheço pior porque saí para a guerra era ele pequeno e se parece tanto com a mãe. Gostei que tivesse estado comigo em Itália quando fui lá receber um prémio, não este de agora, um outro, e o grande Fabio Capello (ou Capelo?) me veio pedir um autógrafo. Mas nesta crónica, para lhe chamar aquilo que a revista lhe chama, quero falar do João. Somos os dois mais velhos e a relação entre nós foi sempre indestrutível.
Como ele costumava dizer
– Eu sei sempre o que tu estás a pensar e tu sabes sempre o que eu estou a pensar.
E é era verdade, mano, passámos tantos anos juntos no mesmo quarto. Só há pouco tempo o Henrique me contou que depois de me ter operado ao cancro do intestino o João foi ter com ele ao bloco e se abraçaram os dois a chorar. Não podíamos suportar a ideia da morte um do outro e eu não me conformo com o teu desaparecimento, numa doença que tu encaraste com uma coragem e uma dignidade exemplares, porque foste sempre exemplar, mano. Por baixo da tua aparente distância, tu que algumas pessoas consideravam arrogante, havia um coração de oiro e uma discreta bondade sem fim. A tua relação com o pai era complexa e competitiva. Eu nunca entendi bem essa fraqueza tua por me estar nas tintas para uma opinião que não fosse a minha. Fiz sempre só o que queria e não me interessavam guerras inúteis. Estava seguro da minha razão e os outros que achassem o que quisessem: era-me igual ao litro e o tempo corria a meu favor. A certa altura da sua vida o João passou por problemas pessoais difíceis. Meti-me no avião e fui para Nova Iorque ter com ele. Enquanto ele trabalhava no hospital eu escrevia. Depois de chegar do hospital, jantávamos e víamos os play-offs do basquete. Nunca imaginara que se podia jogar com tanto humor. E descobri génios como o Doutor Irving, para não falar na equipa toda dos Lakers ou dos Boston Celtics. E os tenistas: Björn Borg, de quem um crítico dizia que os outros jogavam ténis e ele outra coisa. E, portanto, tinha de pensar que os escritores escrevem, mas eu, para ser bom mesmo, devia fazer outra coisa. Obrigado Larry King pelo que aprendi consigo. Víamos aquilo a comer uns cartões enormes de gelado, conversávamos imenso, aos domingos íamos comer um brunch à Down Town, depois de noites de sábado nas discotecas próximas com cantores que imitavam Frank Sinatra ou Tony Bennett. Emendei o livro, voltei para Lisboa, o João voltou para Lisboa pouco depois, tornou-se professor catedrático aqui, renovou a Neurocirurgia e continuámos a não precisar de falar para conversarmos. A última vez que estivemos juntos sozinhos foi quando se veio despedir de mim antes de morrer. Foi-se embora de táxi e fiquei horas sozinho no passeio depois do automóvel desaparecer. Alguém que me conheça pode encontrar-me, ainda hoje, no passeio à Tua espera. Até chegar a minha altura continuarei à tua espera, mano. Juro que continuarei à tua espera. Quem, de resto, nos pode separar, não é?