Na semana passada estive em Paris e fiquei surpreendida pela quantidade de ratos que habitam na cidade. À noite, nas ruas e praças do centro, é impossível não nos cruzarmos com roedores saindo e entrando das sarjetas, subindo pelos caixotes do lixo e brincando alegremente uns com os outros, com o à-vontade de quem está em casa e não teme a presença humana.
Já tinha ouvido relatos sobre o problema dos ratos em Paris e já tinha lido qualquer coisa sobre as crises periódicas, que acontecem com a subida do Sena no tempo das chuvas. O rio sobe e os ratos também. Procurando abrigo longe dos esgotos e tornando a sua presença ainda mais visível.
São eles os verdadeiros donos da cidade e há até quem diga que existem mais ratos do que pessoas em Paris. Claro que perante estas evidências ficou explicado porque é que a Pixar fez um filme sobre um rato cozinheiro chamado Ratatouille, passado em Paris. O trocadilho com o nome é irresistível e nada representa melhor a cidade do que a sua gastronomia afamada, sobretudo quando associada ao animal que mais povoa as suas artérias (superficiais e subterrâneas).
Ora isso fez-me pensar que, com a crescente popularidade do Porto, faria sentido fazer um filme de animação sobre as gaivotas da Invicta. Primeiro porque são um elemento omnipresente nas ruas e céus da cidade e, segundo, porque personificam bem o feitio altaneiro e algo resmungão dos portuenses.
Há quem ache que é Rui Moreira que manda na cidade, outros dizem que é Pinto da Costa e os Super Dragões, alguns ainda (mais avisados) afiançam que são as mulheres tripeiras, com sua força motriz e munidas do seu vernáculo, que empurram a cidade para diante e põem ordem na situação. Nada mais ilusório. Quem manda na cidade, e todos os portuenses concordarão, são as gaivotas!
E eu que cresci ao pé do mar posso garantir que todos nós lhes temos respeitinho. Ver um bando de gaivotas a sobrevoar o recreio da escola era o suficiente para nos abrigarmos todos, desesperadamente, para evitar bombardeamentos fisiológicos. Ver alguém com um bolo na mão a descer Santa Catarina desavisado é o que basta para que as mais afoitas, quase de rapina, desçam em voo picado para roubar a iguaria (para revolta da vítima e indiferença de todos os que já se habituaram a ver a cena acontecer quotidianamente). Ver gaivotas a bicar as vísceras de pombas mortas e até de gatos passou a ser comum, e todos sabemos que à falta de peixe fresco, bolos roubados e lixo disponível, as gaivotas passam a abutres e cometem até canibalismo se preciso for.
Claro que ao contrário dos ratos e dos pombos, aquela imaculada penugem branca, somada ao ar altivo e à nobreza do porte fazem com que não lhes tenhamos nojo, nem desprezo. Mesmo que a sua presença excessiva na cidade, muito motivada pela disponibilidade de lixo, faça com que cada vez mais se tornem um problema. Sobretudo quando furam sacos do lixo e espalham o seu conteúdo nos passeios, quando fazem banhos de imersão nas caleiras molhadas e ninhos nas caleiras secas, danificando-as e entupindo-as, quando se tornam agressivas nas mesas das esplanadas, quando não deixam dormir quem vive nos últimos andares, da Rua do Almada à Rua das Taipas, da Sé à Ribeira, porque grasnam nervosamente durante toda a noite.
Posto isto, seguindo o exemplo francês, e dada a evidência de que não conseguimos controlar a praga, o melhor seria mesmo instrumentalizar a gaivota como ícone do marketing urbano, fazendo o tal filme de animação. Assim, além de tornarmos fofo o que é na verdade um problema, ainda promovemos pelo mundo a pitoresca beleza da gaivota portuense. A que resmunga violentamente na noite de São João, quando o seu espaço aéreo é invadido por balões. A que rouba croissants e folhados mistos com a destreza de um carteirista voador. E sobretudo a que prefere tripas de pombo a peixinho do Atlântico…
Afinal, nada mais very typical do que uma gaivota tripeira.
(Crónica publicada na VISÃO 1326 de 2 de agosto)