Lula da Silva presidiu a um Brasil minado pela corrupção até ao tutano. Na mais benigna das hipóteses, fechou os olhos e tolerou o crescimento de um polvo cuja dimensão atingiu níveis inimagináveis. Em alternativa – mais provável, a fazer fé na meia dúzia de acusações que contra si correm na justiça –, foi um dos vários beneficiários do “sistema” instituído. Em qualquer dos casos, e independentemente de quaisquer outros méritos governativos que possa ter tido, o seu tempo político deveria ter acabado. Quanto mais não fosse porque a sua reeleição dificilmente traria ao Brasil qualquer tipo de esperança numa regeneração do seu sistema político de que está desesperadamente precisado.
Isto dito, e não obstante o que mais à frente se dirá, não consigo deixar de olhar com desconforto para o processo jurídico que o conduziu à prisão. Deixo de lado o contexto – e o contexto é o ambiente de suspeição política que está criado desde o tortuoso impeachment de Dilma Rousseff. O meu desconforto começa por se fundar numa questão de princípio. Repugna-me o recurso à chamada “delação premiada”. Assim como, do alto da minha ignorância jurídica, me incomoda a ideia de que um condenado com recursos pendentes para um tribunal superior possa iniciar o cumprimento de uma pena, numa clara inversão do princípio (que julgava estabelecido) da presunção de inocência. Posso compreender os méritos conjunturais e práticos invocados para torcer os princípios (nomeadamente, a ineficácia da lei penal), mas tenho para mim claro que seguir esse atalho pode conduzir-nos a lugares perigosos. O meu desconforto aumenta com a alegada “tramitação recorde” do recurso de Lula. Mas são as palavras do comandante do Exército, General Eduardo Villas Bôas, na véspera do julgamento do habeas corpus, que definitivamente me tiram do sério: “Asseguro à Nação que o Exército Brasileiro julga compartilhar o anseio de todos os cidadãos de bem de repúdio à impunidade e de respeito à Constituição, à paz social e à Democracia, bem como se mantém atento às suas missões institucionais.” É, no mínimo, uma conceção bizarra do princípio (que também julgava estabelecido) da separação de poderes. É, mais provavelmente, um sinal eloquente de que alguma coisa está muito podre no regime político e constitucional brasileiro.
É, pois, já o terão percebido, com sentimentos muito ambivalentes que me posiciono nesta tragédia que parte o Brasil em dois. Mas tenho a certeza, ainda assim, de que o caminho da sensatez é o que acabou por escolher Lula da Silva. E o caminho da sensatez é, neste caso, o caminho da prisão. É, apesar de tudo o que fica dito, no terreno da justiça que deve prosseguir a sua luta. Tentar provar nas ruas, e não nos tribunais, uma inocência que diz ser sua seria desistir de defender o que resta de um estado de direito no Brasil. Ironia das ironias, ao acatar a ordem de prisão, o revolucionário revela, pois, devo reconhecê-lo, mais sentido de Estado do que o general. Se isto não é um país de pernas para o ar, não sei o que será.
(Artigo publicado na VISÃO 1310, de 12 de abril de 2018)