
No dia em que percebeu que tinha cancro, Anabela Oliveira regressava a casa de comboio. Tinha acabado de falar ao telemóvel com a sua médica, que insistira para que fosse conhecer com urgência os resultados do exame que fizera ao colo do útero. Quando desligou o telemóvel, um rio de lágrimas começou a correr-lhe pelo rosto. De repente, foi como se o mundo à volta dela parasse, como se a carruagem tivesse subitamente ficado vazia. Quando saiu para a rua, todo o bulício da cidade tornara-se silencioso como uma floresta remota. Só ouvia o restolhar das folhas das árvores, a melodia dos pássaros e o sussurrar do vento que lhe beijava a cara. Isso e aquela voz inclemente na cabeça. “Vais morrer!” Estava grávida de 13 semanas.
Histórias como as de Anabela e as de outras quatro mulheres que retrato no livro Filhos da Quimio, acabado de editar pela Fundação Francisco Manuel dos Santos, não são comuns. O cancro durante a gestação é uma situação muito rara – afeta cerca de uma em cada mil grávidas –, embora cada vez mais frequente, essencialmente por duas razões: não só as mulheres engravidam mais tarde, e a probabilidade de contrair a doença aumenta à medida que se envelhece, como parece haver um aumento dos tumores em mulheres mais jovens.
Até perto do início deste milénio só existiam duas hipóteses para quem estivesse nesta situação: ou abortar ou aguentar a gestação até que o feto tivesse viabilidade, induzindo o parto prematuramente para se poderem iniciar os tratamentos. Mas hoje, em alguns tipos de cancro, já é possível fazer quimioterapia enquanto o bebé cresce na barriga da mãe, salvaguardando a vida de ambos. Foi o que fizeram três das mulheres cujas histórias conto no livro: a Raquel, a Liliana e a Gintare. O facto de manterem a gravidez não piorava o seu prognóstico.
Mas nem sempre é possível salvaguardar o feto sem pôr em risco a vida da mãe. Com tumores líquidos, como as leucemias ou os linfomas, que envolvem frequentemente uma quimioterapia que destrói quase por completo as células da medula óssea, ainda que temporariamente, a interrupção da gravidez ou o parto prematuro têm de ser considerados. O mesmo acontece com cancros ginecológicos, como o de Anabela, que deixou um tumor crescer “como um repolho” para que o Diogo, hoje com 9 anos, pudesse nascer. “O cancro do colo do útero precisa de radioterapia e não podemos administrá-la enquanto a paciente está grávida”, explicou-me a dra. Fátima Cardoso, diretora da Unidade de Mama do Centro Clínico Champalimaud. Alguns cancros da mama mais agressivos, se necessitarem de tratamento imediato no primeiro trimestre de gestação, podem também obrigar à interrupção da gravidez.
Se a quimioterapia não põe em perigo o feto é graças a esse milagre da natureza que é a placenta. Vários estudos internacionais realizados em crianças sujeitas a este tratamento durante a gestação demonstram que até aos 20 anos elas não apresentam qualquer anomalia no seu desenvolvimento. As principais consequências são um pequeno aumento da frequência cardíaca durante a gestação e, em cerca de um terço das situações, uma diminuição do peso à nascença, mas que é rapidamente recuperado nos primeiros meses de vida.
Porém, as sequelas a longo prazo são ainda uma incógnita, porque não existem estudos que tenham acompanhado estas crianças durante mais de duas décadas. Falta saber se terão, por exemplo, uma maior incidência de leucemias quando tiverem 30, 40, 50 anos, porque estiveram expostas a quimioterapia in utero – sabe-se que as pessoas expostas a níveis muito elevados de radiação apresentam maior probabilidade de desenvolverem leucemias.
Nenhuma mulher está preparada para ouvir que tem cancro. Muito menos quando está grávida, naquela que deveria ser a fase mais bonita da sua vida. Mas esta situação não é necessariamente o fim da linha, nem para a mulher nem para a vida que carrega do ventre. As histórias de Filhos da Quimio são, por isso, sobre a vida e o que ela tem de mais importante: o amor. Este é um livro sobre um amor incondicional, maior do que tudo. No fim, só ele interessa.
(Artigo publicado na VISÃO 1305, de 8 de março de 2018)