Todos vimos a notícia. Uma mulher muçulmana, multada e obrigada a despir a túnica que trazia vestida, quando descansava numa praia francesa, por um grupo de polícias que considerou estar perante um burkini – peça de vestuário proibida recentemente em algumas cidades francesas, por constituir um desrespeito pelos “bons costumes e o secularismo”.
Não sendo caso único, e com a polémica instalada, o Conselho de Estado francês é chamado a deliberar, decidindo pela suspensão da proibição. Ainda assim, o debate continuou aceso e, no meio de tanto preconceito e generalização, decidi recorrer à velha máxima, para dizer que “uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa”!
Uma coisa é a burqa, que cobre o rosto e as mãos, não permitindo a identificação de quem a veste e cuja proibição se entende, principalmente num contexto de grande alerta contra ameaças terroristas. Outra coisa bem diferente é o burkini, criado com a intenção de dar às mulheres muçulmanas a possibilidade de ir à praia, mantendo o “decoro” religioso.
A burqa é símbolo de opressão, anulação de identidade e controlo. O burkini, pelo contrário, permite o prazer e a liberdade de um banho de mar, a quem habitualmente não é permitido. Não tenhamos dúvidas, o desprezo do fundamentalismo islâmico pelo burkini é com certeza muito maior do que o de qualquer julgamento etnocêntrico!
Uma coisa é estarmos preocupados com o fundamentalismo islâmico e com todas as consequências preocupantes, que o seu crescimento tem tido, dentro e fora da Europa. Outra bem diferente é combater o fundamentalismo religioso com uma espécie de fundamentalismo laico. Precisamente porque a laicidade do estado existe para garantir o direito de praticar ou não uma religião, assumindo todos os credos como admissíveis, sem que nenhum se sobreponha aos demais, dentro do quadro das nossas liberdades democráticas.
Uma coisa é achar que as mulheres muçulmanas deviam ter mais liberdade, reivindicando-o ativamente, contribuindo para a mudança das mentalidades e favorecendo a melhoria das condições de vida nas comunidades islâmicas. Nomeadamente, através de estímulos efetivos à escolarização e emancipação das mulheres ou, pelo menos, não criando mais entraves (como é o caso da proibição do uso do véu islâmico em escolas e universidades). Outra, diametralmente oposta, é reagir à obrigação de tapar, obrigando a despir. É que o estímulo à autodeterminação feminina não há de brotar deste tipo de autoritarismo.
Obrigar uma mulher a mostrar o corpo na praia, através de controlo policial, não só é uma forma de violência, como ensaia um conceito bizarro de “libertação forçada”. E sendo habitual que o corpo da mulher seja sujeito a este tipo de mandos e desmandos, esta ideia peregrina de forçar a ser “livre”, além de ser totalmente paradoxal, chega a ser de uma arrogância surpreendente.
Vamos lá ver se a gente se entende: o que está errado aqui não é a quantidade de pano, é a obrigação! E a obrigação é sempre obrigação, quer seja para tapar, quer seja para despir!
Já para não dizer, que segundo esta lógica, todas as manifestações religiosas têm de ser abolidas das praias… Freiras veraneantes, só à “paisana”. Crucifixos ao pescoço seriam confiscados. Tatuagens com símbolos religiosos (do clássico Ohm, ao taoismo do Yin e Yang) bem escondidas se fazem favor. E assim sucessivamente, até ao limite do obsessivo, para que o fundamentalismo laico se cumpra. É que, caso contrário, este secularismo linha-dura será apenas um disfarce mal-amanhado para a mais pura e simples islamofobia.
Em pleno século XXI, numa das mais maduras democracias do mundo, esta é só mais uma manifestação do reacionarismo fascista, que está a crescer a olhos vistos na Europa, e que é o melhor combustível para o crescimento do tal fundamentalismo islâmico que nos ameaça.