Que um dirigente político que não gosta da democracia glorifique um ditador e mande afixar cartazes racistas e xenófobos é normal. Não faz mais do que propagandear as suas convicções, agradar aos seus e captar mais votos dos que pensam como ele.
Já não é tão normal que tanta gente relativize este tipo de comportamento.
Passei a semana a ouvir falar acerca dos efeitos que o Ventura queria produzir com aqueles cartazes. O ângulo de análise de praticamente toda a gente que perora no espaço público foi o de ficar de boca aberta.
A maioria limitou-se a enfatizar que os comunistas, ou seja, os que se afirmam sociais-democratas ou democratas-cristãos ou simplesmente não são de direita radical, caem numa armadilha se disserem que aquilo é, muito provavelmente, um crime de incitamento ao ódio e, de certeza, uma coisa nojenta. Não faltaram os que se riram muito da genialidade do Ventura.
Pelos vistos, a atitude certa é assobiar para o lado ou então dizer que o Ventura é um espertalhão porque está a tentar dividir a comunidade e a fazer com que se fale dele. Já criticar o conteúdo é que não pode ser. O que é proibido dizer é que um tipo que espalha aquela mensagem e defende o regresso ao fascismo (que é o que faz quem diz aquilo dos três Salazares) é um xenófobo, um racista e um fascista.
E, claro, não faltou quem desculpasse os pobres dos portugueses. Claro que não há racistas, nem xenófobos e todos odeiam o anterior regime. Nada disso, o Ventura diz aquilo tudo para perder votos, para se suicidar politicamente.
Quando é que, de uma vez por todas, metemos na cabeça que há mesmo muitos portugueses que são racistas, xenófobos, saudosos de Salazar (por ignorância, falta de memória ou convicção)? Ou talvez não o sejam, mas a democracia e os seus valores são para eles dispensáveis.
O Ventura diz o que diz, põe os cartazes que põe, porque há mesmo muitas pessoas que gostam daquelas mensagens, o dividir e polarizar e essas coisas todas é secundário e pouco relevante. Bem sei, custa admitir que os nossos vizinhos do lado, as pessoas que se cruzam connosco na rua, alguns dos nossos amigos, gostam da mensagem e ficam muito divertidos se um deputado manda outro para a sua terra apenas por ser negra, mas é o que é: são quase um milhão e meio e a crescer.
Duma coisa estou certo, não será por infantilizarmos as pessoas, não será por dizermos que elas não pensam o que exprimem, que faremos com que mudem de opinião.
Seja como for, é normal que quem quer destruir a democracia tente destruir os seus pilares, repito. Já ver o PSD, um partido pai da nossa democracia, colaborar neste processo é muito mais do que anormal, é arrepiante.
Na sequência da aprovação da aberrante Lei da Nacionalidade, Leitão Amaro, figura central do Governo, elogiou o partido que manda deputados portugueses negros regressarem à terra deles (?) e promove mensagens racistas e xenófobas. Não contente com isso, declarou, eufórico, que agora “Portugal é mais Portugal”.
Foi este mesmo cavalheiro que disse que o aumento da imigração tinha sido no âmbito de um processo de reengenharia social e política promovido pelo anterior governo. Replicou, aliás, a tese do seu pai político, Passos Coelho, que cada vez que lhe põem um microfone à frente defende o delírio da teoria da grande substituição, ou do intelectual Miguel Morgado, que acha que “há um convite dos partidos de extrema-esquerda para inundar os países europeus de imigração porque isso é uma forma de reencenar a revolução social que falhou”. Para compor o ramalhete, tivemos o secretário de Estado da Imigração, Rui Armindo Freitas, a dizer que o PS queria mais imigração para ganhar votos – os imigrantes chegavam e punham-se logo a votar…
Para cereja no topo do bolo, só faltava mesmo o senhor primeiro-ministro que, rodeado de oito bandeiras de Portugal, afirmou que se “cumpria Portugal”. Lembrei-me de duas frases: “O nacionalismo é a pior das pragas”, dita por Stefan Zweig, e “o nacionalismo é o último refúgio dos canalhas e o primeiro refúgio dos hipócritas”, de Melvyn Bragg.
Numa primeira fase, parecia que o PSD e o Governo estavam a tentar replicar o discurso do Chega para lhe tirar as bandeiras – era e é um erro crasso por ser evidente que o original ganha sempre à imitação. Mas a repetição da mensagem e as medidas em relação à imigração e à nacionalidade já não deixam dúvidas: o Governo e o PSD alijaram o seu património político, renegaram as suas origens ideológicas, cuspiram nos seus fundadores e tornaram-se num partido de direita radical ou, no mínimo, de direita dura.
O PSD já não é um partido da social-democracia europeia, plural, cosmopolita, mas sim uma organização bafienta, defensora do Portugal fechadinho e bacocamente nacionalista.
Ter deixado muitos portugueses politicamente apátridas, na frase feliz do Adolfo Mesquita Nunes, é o menos. O Governo está a contribuir decisivamente para nos tornarmos um país agressivo com os mais vulneráveis e com medo da diferença. Um país que, em vez de tentar resolver os nossos inúmeros problemas sociais e económicos, gasta o tempo a criar um ambiente de desconfiança em relação aos que nos procuram para nos ajudar, e a descobrir problemas onde não há, como é o caso da Lei da Nacionalidade e da patética questão da burca.
Teresa de Sousa, no Público, está coberta de razão. O maior perigo para a nossa democracia não vem do Chega, vem, sim, da deriva do PSD.
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