Nunca nos despedimos como convém dos lugares por onde vivemos. Como nós precisamos e como esses lugares mereciam.
Como já aqui escrevi, os últimos meses são passados no meio de trâmites administrativos e logísticos. Depois vêm os primeiros meses de adaptação ao novo lugar, que são sempre os mais duros. Creio que ter ou não ter experiência é um pouco irrelevante. Podemos ter alguns truques aprendidos nas outras mudanças de país, podemos aliviar o stress logístico, mas o desconforto da adaptação, esse, ninguém nos tira. Temos tudo por fazer, tratar da papelada, do banco, encontrar casa, visitar as escolas, ir ao supermercado é mentalmente esgotador porque as marcas dos produtos nas prateleiras nos parecem todas diferentes, a nossa vida está empacotada em caixas algures em trânsito num contentor, ainda não temos rotinas novas e temos umas saudades medonhas da vida aparentemente organizada que deixámos para trás.
Nesse sentido, aquela viagem que decidimos fazer ao Chile a meio de Agosto e a meio do nosso processo de adaptação teve um efeito catártico para mim. Como dizem os americanos precisava de closure.
Precisava, de facto, de tomar um último café solúvel num restaurante no meio do nada no sul do Chile com chávenas desirmanadas, cada uma de seu pai e sua mãe, para me sentir outra vez um bocadinho em casa. De ir comer croissants ao café das “senhoras mal encaradas”, que ao fim de seis anos e cada vez mais bocas à mesa a comer os ditos croissants, afinal até eram muito carinhosas com os nossos miúdos porque “ustedes son de la casa”. Esse é o momento chave em todas as adaptações em qualquer parte do mundo, aquele momento em que as pessoas se esquecem que nós somos estrangeiros e passamos a ser locais. Uns locais meio exóticos, é certo, mas “de la casa”. Levar os miúdos ao pediatra. Meu Deus, as saudades que eu tenho do nosso pediatra no Chile! Levar a mais nova a andar de baloiço no parque onde os irmãos também andaram de baloiço. Tirámos uma fotografia dos três no escorrega e fartei-me de chorar nas semanas seguintes cada vez que via essa fotografia.
Eu choro muito. Mais do que gosto de admitir. Também chorei no primeiro dia de pre-kinder do meu filho em fevereiro passado. Chorei pelo via cruxis que foi andar um ano antes, de sessão informativa em sessão informativa, levar um miúdo de três anos para a ser avaliado em várias escolas, para finalmente entrar um ano depois na escola que tínhamos escolhido e saber logo naquele primeiro dia de aulas, no meio das fotos da praxe e dos abraços, que o iríamos tirar de lá ao fim de um mês e meio. Eu não chorei de emoção, eu chorei foi de raiva por todo o trabalho de há um ano atrás que então estávamos prestes a deitar pela janela por um sonho de regressar às Europas.
A quimera as Europas.
Vou vos contar, em tom de confissão, o que mais me impressionou no nosso regresso a Madrid: uma cidade suja, nas primeiras semanas parecia não conseguir ir a um parque infantil que não tivesse restos do botellón da noite anterior, ou uma paragem de autocarro que não tivesse latas e vidros partidos no chão que o meu “do meio” insistia em apanhar. Cartazes de “compro oro” por todo o lado a recordarem-me da última crise. Uma cidade envelhecida. Uma coisa é falar de pirâmides demográficas ou discutir o futuro da Segurança Social tal como se lê nos jornais, como algo abstrato e mais tendo vivido tanto tempo na América Latina onde a maioria dos países ainda gozam do chamado bónus demográfico, é algo que vai acontecer lá na frente. Outra coisa é ver a cara desse envelhecimento real todos os dias na rua, no supermercado, no autocarro, logo na chegada a Madrid. Nos vôos no Chile é comum haver um monte de carrinhos de bebé à porta do avião, por aqui vê-se sempre uma fila de funcionários com cadeiras de rodas à saída na manga. Posso dizer que passámos por algumas situações onde as cadeiras de rodas tiveram claramente prioridade sobre várias crianças de colo. Esses episódios foram simbólicos para mim. Costuma-se dizer que um país sem passado é um país sem futuro, mas o que eu senti nesses momentos foi que tínhamos chegado a um ponto de equilíbrio em que como sociedade temos o nosso futuro refém do passado qual visão goyesca de Saturno devorando um filho. E depois vi todas aquelas bandeiras de Espanha à janela desbotadas pelo sol de Madrid. Ou aquela vez em que estávamos num parque e ouvimos música ao longe e eu pensei: deve haver uma feirinha porque já não falta muito para as festas de San Isidro, vamos ver se há barraquinhas de comida. Não era uma feira pelo San Isidro, não havia barraquinhas. A música era do comício do VOX (partido de extrema direita em Espanha) porque estávamos também em época de eleições em Abril passado e o que alcancei a ouvir daquele comício foi uma senhora a dizer que tinha pensado muito antes de se juntar ao partido, mas sabiam que mais?! Já não tinha vergonha de dizer que votava no VOX… E eu pensei que Europa é esta para onde nós voltámos?
Isso foi em abril, agora estamos em novembro e o VOX é a terceira força política em Espanha… em abril o meu Chile parecia uma ilha imaginária longe dos problemas do mundo. Agora estamos em Novembro, passou quase um mês desde o início dos protestos e, se por um lado já não há tanques na rua, a vida continua a decorrer sob um recolher obrigatório não oficial ditado pelos distúrbios e pelas convocatórias de manifestações via redes sociais.
Tendo vivido em Madrid entre 2004 e 2011, creio que a adaptação me custou muito mais porque a realidade do desconforto dos meses de adaptação teimava constantemente em chocar com as minhas recordações idealizadas daquela anterior etapa madrilena. A minha nova realidade parecia querer tirar-me aquele Madrid que tanto recordei com carinho na América Latina. Aquele Madrid ruidoso e feliz, com uma Espanha que crescia a 3%, com senhoras bem vestidas, com claras con limón e tapas, aquele Madrid das revistas do coração em que as aristocratas se casam com toureiros e os toureiros parecem rockstars. Aquele Madrid em que o último metro da noite passava à 1.30h da madrugada cheio de bêbados a cantar.
Passei estes últimos meses, os da saída do Chile e os da chegada a Madrid em denial da situação que tínhamos até então idealizado e para a qual estávamos a caminhar. Queixei-me de tudo, das bandeiras desbotadas, dos velhotes, das bolachas no supermercado, mandei fotos do lixo de Madrid aos meus amigos: “Estão a ver como não estou a exagerar??”. Eu tenho os melhores amigos do mundo! Dizem-me eles que eu me queixo sempre muito no início e depois passa a ser tudo espetacular. Que foi assim com São Paulo e depois com Santiago. Garantem-me eles que também Madrid voltará uma vez mais a ser espetacular.
Passados estes seis meses e depois daquela viagem ao Chile, dou-me conta que há um ruído de fundo que desapareceu. Um certo mal-estar físico que me acompanhou sempre naqueles anos de hemisfério sul. Nunca me adaptei ao facto de ter as estações do ano ao contrário. Parece um detalhe, aqueles invernos intermináveis sem Natal, uma Primavera meio confusa por ter o meu Instagram repleto de atividades de outono para crianças e o Natal em pleno verão com dias longos e idas à geladaria no dia 24 à tarde, mas sem luzes de rua de Natal naquelas noites claras de dezembro.
Deixei de enviar fotos do lixo de Madrid aos meus amigos e decidi por a tal fotografia do escorrega numa moldura. Troquei a minha vida no fim do mundo por uma nova vida aqui ao lado.
VISTO DE FORA
Dias sem ir a Portugal: 1 dia…
Nas notícias por aqui: Eleições em Espanha
Sabia que por cá…. Também se comem castanhas assadas na rua.
Um número surpreendente: O VOX conseguiu eleger 52 deputados para o Congresso, atrás do PP com 88 deputados e o PSOE com 120 deputados.