Podia ser uma alusão à canção ochentera dos Radio Futura, mas trata-se de um assunto delicado. No meu pequeno mundo, as ruas estão, de facto, a arder dos dois lados do “charco”. Precisava de escrever fora do calendário habitual destas crónicas. Por favor tenham em conta que o que vou aqui escrever é a minha visão dos acontecimentos, bem ou mal informada, é isso mesmo, a minha visão pessoal, não a opinião da revista VISÃO, por favor não lhes enviem hate mail para a redação!
Tudo começou de forma meio sonolenta. Ainda não tínhamos recuperado do assombro que era ver os confrontos em Barcelona no telejornal da noite ao longo dos últimos dias. As barricadas nas ruas de Barcelona recordam episódios da guerra civil espanhola, passados quase 100 anos a guerra civil continua a ser um trauma coletivo da sociedade espanhola. Estreou recentemente o último filme do chileno Alejandro Amenábar “Mientras dure la guerra” sobre Miguel de Unamuno e o início do franquismo; em algumas cidades houve manifestações, gritos de ¡Arriba España! e bandeiras franquistas nos cinemas… mas, dizia eu, estávamos nós ainda a tentar entender o que se está a passar com esta Espanha para onde nos mudámos, quando começaram a chegar notícias, sobretudo através das redes sociais, de que algo se estava a passar em Santiago. Tinham subido o preço do bilhete do transporte público e em resposta começou a organizar-se uma evasão massiva no metro, uma espécie desobediência civil levada a cabo inicialmente por estudantes do secundário. As notícias misturavam-se com algumas piadas e memes como a do videoclip Bad do Michael Jackson, que também entrava sem pagar no metro. Estaríamos a meio da semana passada, mas rapidamente a coisa perdeu a graça, os protestos tornaram-se violentos e soubemos que tinha havido confrontos com os carabineros dentro do metro e que tinham lançado granadas de gás lacrimogéneo dentro das estações. Os protestos passaram do metro para a rua, e do custo dos transportes públicos para a denúncia da desigualdade social no Chile. Quando realmente começamos a prestar atenção às notícias e a ler os meios de comunicação chilenos, já tinha começado a roda viva das acusações, que a culpa era dos políticos tinham feito declarações infelizes e carentes de empatia, o que tinha indignado ainda mais a população. Que a extrema esquerda estava a organizar os protestos na rua para desestabilizar o governo. Que a polícia estava infiltrada nos protestos para aumentar a violência e assim justificar as cargas policiais … teorias da conspiração para todos os gostos. A verdade é que no meio de toda a confusão, incêndios, destruição de equipamento público e pilhagens, o Governo decidiu fechar o metro e enviar os militares para a rua para garantir a ordem. Passado o fim de semana, era Domingo à noite deste lado do charco, quando me apercebo pelo Whatsapp do meu antigo trabalho no Chile, que tinha sido declarado o recolher obrigatório e que um dos meus antigos colegas não sabia se conseguiria apanhar um vôo para o Peru na manhã seguinte de segunda-feira por causa da hora do levantamento do “toque de queda”. Quase ao mesmo tempo recebemos uma comunicação do Consulado de Portugal no Chile a informar que para quem tinha bilhetes de avião, que os mesmos serviam de salvo-conduto para se deslocarem ao aeroporto durante o período do recolher obrigatório. Tento ser útil e partilho esta informação com os meus antigos colegas. Os protestos tinham-se espalhado pelo país, o grémio dos camionistas anunciou que não iria paralisar o país (more on that later) e os trabalhadores da Minera Escondida a anunciaram uma greve.
Nessa segunda-feira, mandaram os funcionários para casa às 14h no meu antigo trabalho. Noutras empresas as pessoas trabalharam de casa. Na terça-feira o aeroporto estava fechado. As escolas também fecharam. Havia filas nos supermercados.
Militares na rua, recolher obrigatório e filas nos supermercados são traumas coletivos da sociedade chilena. Há um punhado de situações que parecem gerar um comportamento condicionado por parte da sociedade que não tem tanto que ver com a situação atual de base, por muito grave que seja, mas com vivências coletivas do passado. A decisão de enviar os militares para a rua, junto com as declarações mais do que infelizes do Presidente Piñera de que “o país está em guerra contra um inimigo poderoso”, valeram-lhe quase de imediato ser chamado de ditador, desencadeando toda uma chamada nas redes sociais e na rua para lutar “pelo fim da ditadura no Chile”. Nesse sentido, foi muito importante o grémio dos camionistas vir dizer que não iria paralisar o país… tal como aconteceu da outra vez em que houve filas para os supermercados e militares na rua…
Tento imaginar a nossa antiga vida chilensis. As pessoas com quem falo estão com o coração apertado ainda que fisicamente não tenham passado por nenhuma situação de violência. Tudo tranquilo no bairro onde moram. Dizem-me que isto já aconteceu outras vezes, numa referência às manifestações estudantis de 2006 (a chamada revolução dos pinguins no primeiro governo de Bachelet) e a greve estudantil de 2011 no primeiro governo de Piñera que durou dois meses.
O Chile é um país profundamente desigual, isto não é uma opinião, os dados da OCDE demonstram-no como um facto. O sistema de educação e o sistema dos fundos de pensões, no essencial privados e ambos herança do regime de Pinochet, são os dois pontos mais visíveis desta desigualdade social, até porque perpetuam o status quo, e por essa razão são normalmente o rastilho que inicia estas manifestações cíclicas da sociedade chilena. A forma como os governos de esquerda ou de direita atuam perante as manifestações e as suas reivindicações é obviamente diferente. A Presidente Bachetet não quis enviar os militares no rescaldo do terremoto de 2010 em Concepción e é acusada até hoje de não ter protegido a população. O Presidente Piñera enviou os militares para o centro de Santiago e é acusado de ditador. O mesmo presidente Piñera que no final do ano passado demitiu de forma bastante pública o Diretor dos Carabineros (uma vez que já que lhe tinha pedido a demissão e este não via razões para se demitir) pela forma como a instituição tinha gerido o caso da morte do jovem de etnia mapuche Camilo Catrillanca. Na conferência de imprensa disse que os carabineros precisavam de uma nova liderança que soubesse lidar com os problemas atuais e os desafios do futuro. Implícito ficava que a liderança cessante tinha tiques do passado, ouch!
O Presidente Piñera pode ter imensos defeitos, mas não é um ditador. Geriu a crise do preço dos transportes desde a perspetiva da elite a que pertence, não sendo sensível à desigualdade social que afeta sociedade chilena em modo panela de pressão.
Passou já uma semana desde o início desta crise. As manifestações são maioritariamente pacíficas. O metro retomou o funcionamento parcial de algumas linhas, o Presidente veio pedir desculpa pela falta de sensibilidade que mostrou, o governo vai apresentar um pacote de medidas para reformar o sistema de pensões e está também em discussão uma proposta para reduzir o salário dos deputados.
Nos últimos dias, o meu Instagram tornou-se um via cruxis de quadrados negros, reflexo dessa elite bem-pensante que se esforça por mostrar empatia perante a desigualdade social no Chile e que quase sente necessidade de pedir desculpa pelos privilégios com que sempre viveu. Muitos dos que não foram trabalhar nestes dias, foram ajudar a limpar as ruas dos escombros. Os chilenos podem entrar em curto-circuito quando vêm um tanque na rua, mas perante uma catástrofe, seja um terremoto, cheias, um incêndio ou mesmo esta violência social, os chilenos não hesitam em sair à rua com uma pá na mão, dispostos a ajudar, dispostos a levantar o país outra vez dos escombros. Esse é o Chile lindo de que tantas saudades tive nestes últimos meses.
Viva Chile, mierda!
VISTO DE FORA
Dias sem ir a Portugal: Um mês e meio aproximadamente…
Nas notícias por aqui: A situação na Catalunha/ a situação no Chile
Sabia que por cá… Ainda nem passámos o Halloween e a lotaria de Natal já está à venda.
Um número surpreendente: Esta semana de manifestações e confrontos no Chile teve um saldo de 15 mortos segundo as fontes do governo, 42 mortos segundo algumas organizações de direitos humanos.