Beth, miúda confiante, criativa, de fato de mergulho ou prancha de bodyboard na mão e lábios roxos das horas a fio passadas no mar. Foi assim que a conheci, tinha ela apenas cinco anos.
De todos os momentos que passámos junto ao mar, nunca pensei que o último chegasse aos seus 16 anos. Muito menos que lhe leria as últimas palavras de adeus do mesmo livro que leio às minhas pequenas antes de adormecerem.
Às vezes, a vida tem tanto de extraordinária quanto de cruel.
Quando cheguei à Nova Zelândia, há quase dez anos, a Beth e a sua família mostraram-me a beleza de ser criança por cá. De pés descalços, rodeados pela magnificência simples da natureza, do mar cheio de vida e das horas a fio de brincadeira no que se tornou um dos sítios mais especiais para mim; Kaikoura.
E assim aprendi, no meu primeiro Verão na Nova Zelândia, a magia deste lugar. A experiência repetiu-se por vários anos.
O campismo nunca foi para mim quando morava em Portugal, mas a Beth e a sua família converteram-me, com o seu cantinho junto ao mar, onde comungámos com golfinhos, focas e outras formas magníficas de vida. E onde as noites se tornaram especiais com o som das ondas, com fogueiras feitas do que se colheu pela praia, marshmallows a derreterem ao lume, as serenadas pela guitarra da Beth.
Foi a Beth que conseguiu convencer-me, a muito custo, a entrar na água pela primeira vez. É que mesmo no Verão aquela costa é muito fria. Mas lá entrei, devagarinho, a tremer, para lhe fazer a vontade.
Enquanto Beth dizia umas piadas, apareceu uma foca e nadou juntinho a nós. Eu parecia uma criança, de coração a palpitar, deslumbrada! Mas, claro, para ela, nadar com as focas era normal. Foi sempre assim que passou os seus verões.
Mal sabia eu que, exactamente dez anos mais tarde, iria aprender uma lição muito dura com esta miúda que me cativou o coração.
Nada indicava que a Beth não estava bem. Tinha ansiedades que nos pareciam normais, próprias de quem navega os tempos turbulentos da adolescência e as inseguranças pelas quais também eu me lembro de passar. Mas era activa, com um sentido de humor muito peculiar, e tinha, sem dúvida, uma vida cheia. Jogava hóquei, tocava guitarra com imenso talento, adorava o oceano, as caminhadas em natureza, sempre rodeada pelos irmãos, pela família, pelos amigos. Rodeada de amor.
Quando a vi deitada naquela cama de hospital, a vida a esvanecer-se do corpo, uma pergunta enchia-me a cabeça: “querida, como é que passámos desta vida cheia a isto? Como é que aqueles verões podem existir na mesma vida de que queres livremente abdicar? O que é que eu poderia ter feito por ti?”.
A verdade cruel de que Beth decidiu terminar a sua própria vida, com apenas 16 anos, é muito difícil de digerir. Especialmente quando estudos recentes sobre o suicídio na Nova Zelândia revelam que lideramos as estatísticas no mundo desenvolvido no que respeita ao suicídio na adolescência. E que na cidade de Christchurch a taxa é quatro vezes superior à média nacional. Isto é assustador e devastador na mesma medida.
A questão é que nunca pensei que acontecesse a alguém tão próximo, muito menos uma miúda como a Beth.
Ainda que os estudos publicados nos ajudem a perceber as causas, é muito difícil aceitar que jovens como a Beth cheguem a um estado de desespero tal, que a única opção que lhes parece viável é terminar com a própria vida. O que dói mais é que acontece debaixo dos nossos olhos, porque quem sofre em silêncio esconde de forma soberba esta escuridão que avassala a alma.
É sobretudo difícil aceitar que alguém sofra de forma tão derradeira em tão tenra idade, porque só um sofrimento insuportável explica uma decisão tão final e arrasadora.
Parte de mim chora o mundo que criámos, onde nos tornámos escravos da positividade a qualquer custo; em que cada vez menos normalizamos as emoções negativas, em favor de diagnósticos rápidos e comprimidos mágicos. Percebo porquê; à superfície, é muito mais aliciante adormecer a dor, do que senti-la na sua totalidade. Só que perdemos a resiliência que é suposto ganharmos da experiência humana.
Mas haveria tanto mais a dizer…
Como é que se lida com isto sem perdermos de vista a magia da vida? Como se recupera desta perda? Como avançamos com confiança em relação aos nossos próprios filhos? Como é que se mudam estas estatísticas rapidamente?
Apesar da imensidão destas questões, não são nada, face ao que os nossos amigos, que perderam a filha, aos irmãos que perderam a sua companheira de vida, enfrentam agora. O tamanho desta dor não tem fundo. A agonia diária de viver com esta perda trágica está em todo o lado, em toda a gente, em todas as horas e todos os minutos, com muito poucas pausas para respirar.
Se a Beth soubesse o rasto de devastação, de dor profunda, crua e o vazio arrebatador que iria deixar para trás, talvez, quem sabe, tivesse feito uma escolha diferente.
A partida da Beth teve um impacto profundo em mim; num momento, a clareza de que nada importa, senão o amor que temos uns pelos outros. A verdade é que nunca me apercebi o quanto a amava, e aos seus pais e família, até ao dia em que a vi naquela cama de hospital. Tinha uma ideia, mas o amor que partilhamos no dia-a-dia tende tende a ser anestesiado pelas preocupações da vida, que, quando tomamos por garantida, nos parecem tão importantes.
Mas quando a vida chega ao fim, fica o amor. O amor e a dor que vem na mesma medida. E só o amor nos pode ajudar a recomeçar, a pouco e pouco. Só o amor, com o tempo como aliado, poderá trazer algum alívio, algum significado maior a uma tragédia tão grande. Só o amor nos trará respostas quando precisarmos de apoiar a família da Beth.
A Beth ensinou-me, quando ganhei coragem para espreitar além da perda, que a alma que habita o corpo é intemporal. Podemos não partilhar o mesmo espaço físico, mas o amor e a presença das almas que nos são queridas, permeiam a nossa vida diária. Resta aprender novas formas de comunicar.
A Beth irá sempre lembrar-me que não há nada mais urgente que o amor. E que, à beira da morte, só lamentaremos todas as vezes que não demonstramos aos que nos são queridos o quanto os amamos. Que vivamos com esse amor ao peito.