Há alguns anos atrás fui contactada por uma jornalista que me queria entrevistar. O tema era a minha experiência de voluntariado internacional, principalmente após o tsunami de 2004. Respondi-lhe que sim mas esclareci, sem que ela me perguntasse, que a minha perspectiva era muito crítica da ajuda humanitária em geral. Não sei que tom ela usou ou que palavras escolheu, mas algo me deu a entender que ela pretendia escrever uma apologia do voluntariado internacional, tentar fazer derramar algumas lágrimas e/ou elevar os espíritos em tempos de crise. Se assim fosse, disse-lhe, talvez fosse melhor contactar outra pessoa. Se o objectivo, contudo, fosse desmascarar esse mundo, explorá-lo e apresentá-lo tal como ele é, menos utópico e mais verdadeiro, repleto de erros, asneiras, ingenuidades e perversidades, então podia contar comigo. Do outro lado da linha fez-se silêncio durante alguns segundos, até que, engolindo o orgulho mas sem outra alternativa – porque acredito que a agenda já estivesse determinada à partida – veio a pergunta “que outro contacto é que me pode então dar?”
Muitas vezes, não nos interessam a verdade ou os factos, coisa que a comunicação social já descobriu há algum tempo. Interessam-nos história. Precisamos de inspiração que tempere os nossos dias insossos. Teimamos em acreditar em exemplos fabricados na televisão e nos jornais e não gostamos de perder essas referências. E eu, afinal de contas, não sou excepção.
“Malaysia, truly Asia” é uma frase feita que o governo da Malásia adora usar para se referir à harmonia entre as várias culturas que compõem o país. As principais, como já aqui referi anteriormente: a Malaia, a Chinesa e a Indiana. Eu comprei o slogan e sob a alçada dele já aqui escrevi, convicta e emocionadamente, sobre essa coexistência. Porque neste mundo de hoje esta tolerância e convívio pacífico são tão raros, quis-me agarrar a este slogan o máximo de tempo possível. Enfim, gosto de acreditar que somos capazes, enquanto seres humanos, de ultrapassar os nossos instintos mais primitivos. Até que um dia me lembrei deste episódio e decidi que, para emitir uma opinião, não se pode nem se deve fugir do que não se sabe e não é correcto agarrar-nos cegamente às nossas preferências. E foi assim que esta semana desci da varanda do meu condomínio de expatriados e fui conhecer a Lili.
Encontrei-a no coração de Chinatown, num café que presta homenagem à história da cidade, juntando e misturando o novo e o antigo, o moderno e o histórico. Lilian – Lili para os amigos – encaixa perfeitamente neste cenário. Veste de forma informal, uns calções e uma t-shirt larga, e mostra a rebeldia e o inconformismo no corte de cabelo: longo à direita, rapado à esquerda. Como se com o cabelo brincasse e misturasse também ela o tradicional e o moderno, duas Lilis numa, aquela que à direita é a típica rapariga asiática, de cabelos lisos compridos, e à esquerda uma rebelde de cabelo rapado à rapaz. O piercing que fez quando foi estudar para a Suíça e a trouxe de volta à Malásia com o coração nas mãos, receando a reacção dos pais, já não existe, o buraco tapado há muito pelo tempo. Conheci-a através de uma amiga em comum e decidi que ela seria a primeira pessoa que me iria apresentar a Malásia por detrás do véu. Porquê ela? Porque saiu e voltou, esteve lá fora, viu e regressou – consegue por isso vestir a Malásia de dentro para fora e de fora para dentro; porque veio de uma cidade pequena e conservadora, maioritariamente malaia e muçulmana, mas é chinesa e tinha um piercing no nariz aos dezanove anos. Vou-lhe dar a palavra, com arranjos e edição da minha autoria, esperando que não se importe muito com esta apropriação.
Nasci em Kuantan, uma cidade maioritariamente malaia mas com grande número de chineses e indianos. Estudei na Escola Nacional, embora houvesse já na altura escolas chinesas. Os meus pais não viram necessidade de me inscrever numa escola onde iria aprender Mandarim.
Na Escola Nacional o curriculum era em Bahasa Malaio e aprender a língua dominante do país fazia mais sentido. A China não era o que é hoje, aprender Mandarim parecia uma perda de tempo – bastante diferente do pensamento de hoje em dia! Os meus amigos eram Indianos, Chineses, Malaios*. Cada um falava a sua língua mas encontrávamo-nos no Inglês, a língua comum, e todos aprendíamos também Bahasa na escola. Era mais o que nos unia do que o que nos separava. Quando se celebrava o ano novo chinês eles vinham a minha casa; quando era a vez de cada um deles celebrar o seu festival, nós íamos a casa deles. Eram os anos oitenta, a independência estava solidificada e a Malásia entrava em período de prosperidade.
Havia algumas questões, contudo. Pequenas perturbações. Como o facto de, para entrar na Universidade, existirem quotas que beneficiam os estudantes de etnia malaia. Existiam já então e hoje em dia continuam a existir. Quando fazemos os exames de acesso, temos de colocar a nossa etnia ao lado do nosso nome e essa etnia faz com que seja mais fácil ou mais difícil ser admitido. A grande quota vai para a etnia malaia, a seguir para a chinesa, depois a indiana e no final “outras”.
A admissão à Universidade não reflete por isso os resultados e o esforço, mas premeia de alguma forma a etnia. Por isso, muitas famílias planeiam o estudo dos filhos fora do país. A minha familia não foi excepção e isso para mim foi uma benesse. Em casa, tínhamos regras muito rígidas, e eu sempre fui uma rebelde. Passei a adolescência com sede de liberdade, a magicar formas de conseguir sair do país. Fi-lo através dos estudos. Consegui tirar o curso de hotelaria na Suiça, arranjar trabalho lá, conhecer um Mexicano por quem me apaixonei, deslocar-me com ele para o México, terminar o namoro, regressar à Malásia – mas a Kuala Lumpur – e conhecer depois um Irlandês com quem estou casada.
Nesse tempo em que estive fora, a Malásia mudou. Lá fora, quando me perguntavam de onde eu vinha, tinha orgulho em dizer “da Malásia”, embora a maior parte me olhasse com estranheza e perguntasse “e isso é onde?”. Mas tinha orgulho de dizer que vinha de um país riquíssimo culturalmente, com gente diferente mas que é uma, em que não é pelo rosto que me podem identificar, nem tão pouco pela língua, mas pela partilha de uma forma de estar no mundo que é inexplicável para quem não está lá dentro. Mas quando regressei, comecei a reparar que as diferenças estavam mais acentuadas. Os chineses já não iam às Escolas Nacionais, mas à escola chinesa, aprender o mandarim, falam menos Inglês e nada de Bahasa. Os malaios continuavam a ir à Escola Nacional, mas o ensino era mais pobre, a história mais revista e diminuída – mas as quotas asseguram que eles vão mais longe, dão-lhes mais oportunidades. Quanto foi que isto aconteceu? Depois do 11 de Setembro talvez, ou mais lentamente sem uma data crítica. É difícil perceber, pelo menos para quem esteve fora.
Quando vou à minha cidade natal agora, o que vejo é muito diferente do que existia na minha infância. É muito raro ver crianças chinesas a brincar com crianças malaias. Não têm espaços comuns, não se entendem sequer. O inglês é cada vez mais pobre e as escolas que frequentam não são as mesmas. Não há ponto de encontro. Por isso esta identidade que eu tenho, que me palpita na alma e me faz brilhar os olhos quando a tento expressar nas palavras que me falham está em perigo. E todos sabemos. O slogan do governo é uma máscara, fica-se pelas intenções, como a maior parte dos slogans neste país. E porque está em perigo, todos temos um plano B. Queres saber o que é esse plano? É a aquisição de um passaporte ou visto estrangeiro. O direito assegurado de que podemos sair daqui e estabelecer-nos noutro país quando percebermos que as coisas vão estoirar. A maior parte das familias com algumas possibilidades já tem filhos a estudar fora que não regressam. A minha familia, em que todos os três filhos foram estudar fora e os três regressaram, é uma excepção.
Até lá vai-se aguentando. Aqui e ali, vou conhecendo jovens malaios, das três etnias, que me fazem acreditar e reviver aquela Malásia onde eu cresci. Fazem coisas fantásticas e lutam para que este pais possa ser verdadeiramente o slogan. Mas depois estão as quotas em todo o lado. Está a islamização do país que passa por cima da diversidade e a parece querer eliminar aos poucos; há terrenos que são reservados à etnia malaia e só eles podem comprar; há negócios que obrigatoriamente têm de ter malaios na chefia; há a questão do chefe do governo ter de ser de etnia malaia… tanta coisa tão obviamente errada. Nós, malaios de outras etnias, fomos aprendendo formas de contornar tudo isto, de “desenrascar”. Porque no fundo adoramos este país e se não somos malaios não temos identidade. Lembro-me de ter ido à China quando era miúda e detestei tudo o que vi, não me identifiquei com nada e não fiquei com vontade de lá voltar nunca. Sou Malaica ou não sou nada.
Mas sim, tenho receio do que possa acontecer no futuro. Principalmente se a economia continuar a enterrar-se e as pessoas perderem o seu bem estar e terem de arranjar culpados. As eleições neste país são uma fantochada. Toda a gente sabe que são manipuladas das mais várias formas. Há anos atrás formou-se um movimento cívico que tens de explorar. Chamam-se “Yellow shirts”. Perguntas-me se temos sociedade civil e se ela se faz notar, se se revolta, este é um exemplo. Foi reprimido de forma violenta na primeira demonstração mas sobrevive, e agora hás-de reparar, quando se aproximam as eleições, que eles se fazem ver. Mas é a nossa forma de ser também. Arranjamos um plano B, mas não falamos muito alto.
Por isso sim, estás enganada. Essa harmonia já não existe porque quem elabora o slogan é precisamente quem a está a matar.
Retiro a palavra à Lili. Tem muito mais para contar, tanto que nos perdemos em três horas de conversa, mas para o propósito desta crónica chega. Eis o meu contributo, através das palavras dela, para desmistificar a harmonia étnico-racial da Malásia. Não gostei de perder a esperança e ilusão que a crença no slogan me davam. Mas descansar encostado à mentira é a melhor forma de matar a esperança.
Fico-me com as palavras dela, de que há uma juventude que procura mudar o rumo deste país e, se a encontrar, não hesito em trazê-la para aqui.
O termo Malaio é em Português usado indiferentemente para designar alguém da etnia Malaia ou um habitante da Malásia. Os habitantes da Malásia, contudo, têm várias etnias, particularmente a Malaia, a Chinesa e a Indiana.