Uma das coisas que mais me aproxima do meu portuguesismo é a noção de caos quase perfeito que cada um de nós transporta carinhosamente dentro de si. É um caos espacial, temporal e especial. Um português nunca sabe bem o que irá fazer na próxima semana, e planos para 15 dias bordejam questões metafísicas do género “será que estarei vivo?” ou “será que o mundo ainda existirá?”. Esta incapacidade de acreditar em perenidades impede toda e qualquer espécie de organização que esteja muito para lá da diária. Anda sempre tudo atrasado mas ninguém se importa, porque “sabe-se lá se estaremos vivos por muito mais tempo”. Os planos de vida de um português são um bocado como barcos à vela sem quilha, que o vento vai empurrando pela proa, pela popa, mas também pelos bordos. Consequentemente, entre nós, não se usam ritos de passagem. Eu, por exemplo, à viragem de cada década tenho sentido um misto de surpresa e perplexidade por ainda estar vivo, bebo umas cervejas, e passa-me. Acho que é uma forma de estar muito charmosa, porque acordamos todos os dias para um mundo novo, que funciona como se nunca nada tivesse acontecido e tudo poderá eventualmente acontecer. A vida tem mais sabor. Foi por isso com um profundo fascínio que acompanhei a konfirmasjon da minha filha, aqui no epicentro dos fiordes da Noruega.
A Konfirmasjon é um rito de passagem para a adolescência, que todos os noruegueses cumprem no ano em que fazem 15 anos. É um bocado como se dissessem à sociedade que deixaram de ser criancinhas e que se poderá, a partir desta data, contar com eles para o futuro. Antigamente a konfirmasjon marcava a idade a partir da qual era suposto trabalhar – aqui é muito comum ver os miúdos a estudar e trabalhar a partir dos 15 anos. A Konfirmasjon pode ser religiosa ou secular – em ambos os casos as crianças levam meses de percurso em aulas de ética, organizadas pelas Igrejas ou pela Associação Humanista (Human-Etisk Forbund), onde aprendem explicitamente o que são os valores da sociedade em que se integram, bem como aquilo que será, no futuro, esperado deles como cidadãos. É uma espécie de Manual das Boas Práticas Sociais. O sistema educativo norueguês tem uma forte componente de educação da cidadania desde a mais tenra idade e a Konfirmasjon é, por assim dizer, a cereja no topo deste bolo de cozinhado lento.
O dia começou com um evento público – a cerimónia solene de entrega de um documento oficial a cada um dos konfirmanter – com mais de 500 pessoas sentadinhas no auditório da Casa da Cultura (Kulturhus) da cidade. As pessoas vestem-se a rigor como sinal de respeito e há muita gente com o traje tradicional da região (Bunad), um hábito que os noruegueses fazem questão de acarinhar. Sou de ’62, pelo que tenho de combater a sensação constante de que todos estes sinais exteriores de patriotismo serão manifestações de Estado-Novismo. Estou sempre a interpretar a semântica visual patriótica como um her kommer vi, leende, syngende (tradução: cá vamos, cantando e rindo), mas não é. A Noruega é um país novinho – um bebé pela bitola lusa – que tem de ser confortado e acarinhado por todos e a todos os momentos, senão começa a chorar. Parece estranho pensar nisto, mas nós já fomos assim. Só que no século doze.
A seguir a esta manifestação pública de integração social, cada família segue para uma festarola valente, com parentes e amigos, repleta de comidas, bebidas e discursos etilizados e lamechas que duram pelo dia fora. E a criança torna-se, assim, oficialmente crescida.
Há que dizer que nenhuma destas crianças sentirá que para ser escravo é preciso estudar, nem estará nunca obrigada ao modo casinha-dos-pais. A Noruega é um país profundamente descentralizado e por onde quer que se ande – do Norte ao Sul – levanta-se uma pedra e encontra-se uma casinha cheia de noruegueses. Por perto desta casa haverá sempre uma escola primária mas, compreensivelmente, raramente liceus e, ainda menos, universidades; a maioria das crianças que crescem nesta Noruega descentralizada sairão de casa ainda na idade liceal e só voltarão ao lar dos pais para festarolas com comidas, bebidas e discursos etilo-lamechas que pautam o Natal e outros eventos familiares. A educação é grátis, e quem estude tem direito a um empréstimo de um banco estatal – uma espécie de Caixa Geral de Educação – para pagar todas as despesas decorrentes da saída de casa dos pais. Este empréstimo tem juro zero, e 40% do valor é convertido em bolsa desde que o estudante passe de ano. O restante só tem de ser pago mais tarde, quando se entra para o mercado de trabalho, mas por um longo período tem um juro nulo ou ridiculamente baixo. É como se subvencionassem a independência, por esta ter sido promovida a necessidade.
Que bons que são os ritos de passagem quando marcam uma passagem ancorada na realidade.
A maioria das crianças portuguesas que queiram estudar e tornar-se independentes têm à frente de si um longo e árduo caminho, pejado de escombros e armadilhas. Temos de resolver isto, e a bem. Para o futuro, e em força.