Escreveu o poeta russo Fyodor Tyutchev que “Não se consegue compreender a Rússia apenas com a razão”.
Será apenas um acto de presunção à dimensão gigantesca do país, ou uma verdade que teima em desafiar quem visita a Rússia desde os tempos de Ivan, o Terrível?
Após três anos em São Petersburgo, confesso que só tentando equilibrar a razão com o sentir se consegue chegar ao âmago daquilo que é a Rússia, ou melhor, aquilo que um estrangeiro alguma vez chegará a compreender.
Um amigo austríaco, que está cá há mais tempo que eu e fala muito melhor o russo, diz-me tratar-se de uma tarefa impossível.
Bom, se não vou conseguir compreender, ao menos tento viver.
E em vez de mergulhar em tomos de sociologia, escolho mergulhar no tanque de água gelada na sauna, segundo o costume russo.
É o tipo de contraste que nos deixa preparados, de corpo e alma, para os contrastes deste país.
Não é novidade que a sauna é um ritual profundamente enraizado na cultura russa. Quando o inverno consegue fazer descer a temperatura até -50º em algumas regiões, só o calor da sauna mantém as pessoas vivas.
Curiosamente, não é só o vapor que nos mantém quentes.
Há saunas para todos os gostos, mais modernas e europeias, algumas em hotéis, e outras mais tradicionais, ao bom velho estilo soviético, com muito mais piada.
Velhas paredes austeras e decoração duvidosa envolvendo referências à marinha convivem amistosamente com o aroma de vários acepipes típicos da sauna (envolvendo invariavelmente vinagre), misturados com um cheiro a roupa molhada, suor e sabão.
Quem nunca comeu peixe fumado e seco, cujo sabor e textura não andam longe de sola de sapato, empurrado com vodka gelada, não sabe o que perde.
Mas, enquanto publicitário, reconheço que não se faria grande campanha à base de homens de meia idade, seminus e ligeiramente embriagados.
Para nós ocidentais, habituados ao nosso espaço pessoal sacrossanto, este rijo convívio masculino ganha contornos de proximidade inesperados.
Enquanto estava na sauna caí na asneira de fazer alongamentos. Logo um senhor se propôs a ajudar-me, empurrando as minhas costas para baixo para ajudar no alongamento. Temi que esta camaradagem pudesse tomar um rumo para o qual não tinha vindo preparado.
Ao sair, no balneário outro senhor citou-me um famoso poeta russo com a frase “Que tristeza não ter um amigo”. Não fiquei para ouvir os restantes versos.
Como a sauna não é mista, não conheço o lado feminino, mas alguns artigos que li confirmam que as senhoras usam este passatempo relaxante para se livrarem das toxinas e das múltiplas queixas que têm dos maridos. Se uma se queixa de um marido idiota, logo outra contrapõe que o marido em causa é um génio, quando comparado com o seu próprio.
Nem de propósito! Ainda hoje na sauna do ginásio (cujas reduzidas dimensões tornam a coabitação algo estranha) um senhor indagou-me simpaticamente sobre o meu país de origem e opinião sobre a vida na Rússia. Mais do que isso – porque eu estava sem chinelos, à saída ofereceu-me os seus para ir até ao vestiário, devolvendo-os em seguida.
Esta generosidade, este interesse pelo outro, simplicidade na abordagem sem qualquer duplicidade são características que já vivi aqui muitas vezes, dentro e fora da sauna (num autocarro uma senhora ofereceu-me uma vez uma laranja).
Há quem explique este traço de carácter com a dimensão vastíssima do território, aliada a um poder central por natureza distante e pouco confiável, colocando em evidência o facto de que as pessoas não têm realmente muito mais do que umas às outras.
Claro que nem tudo são rosas. Contava-me a minha professora de russo em Lisboa que um seu conhecido, um homem de negócios russo algo irascível, durante os turbulentos anos 90 terá castigado o seu motorista com um bastão de baseball por se ter enganado no caminho.
Seja como for, enquanto me oferecerem chinelos e laranjas, não me posso queixar.