A democracia já estava em retrocesso no mundo há alguns anos, mas o processo acelerou-se com o regresso de Donald Trump ao poder, nos EUA. Ao escolher aliar-se com os autocratas e outros líderes que manifestam um cada vez maior desprezo pela democracia, o Presidente da nação mais poderosa do planeta acaba por usar o seu exemplo e influência como uma espécie de autorização para que outros sigam os seus passos. Sempre com o mesmo método: tomar o controlo das instituições independentes de referência, manipulação sistemática da opinião pública ‒ com recurso frequente à mentira ou a narrativas distorcidas ‒, desrespeito pelas leis, assalto ao poder judiciário, um ataque cerrado à imprensa livre e independente, cortes de apoio às universidades e instituições científicas e a criação de uma clique empresarial, com pulsões monopolistas, que beneficia da sua ligação ao poder.
O efeito de contágio é evidente, desde que Donald Trump anunciou ao mundo que, na sua administração, tudo o que esteja relacionado com os direitos humanos, os princípios do Estado de direito, e defesa da igualdade e da liberdade, deixou de ser prioritário para a política dos EUA. E, quando a manutenção do poder ou a conquista de maior domínio territorial ou económico é que passa a ser importante, não admira que outros autocratas se sintam encorajados a fazerem o que lhes apetece – sem receio, sequer, de receberem alguma reprimenda. Com Trump, a América deixou de usar a retórica de ser a líder do mundo livre e passou a assumir-se, de forma descarada, como instigadora do poder autocrático. Com um efeito de cascata evidente: os autocratas perdem ainda mais a vergonha e avançam contra os opositores sem receios.
Na União Europeia, tem sido evidente a forma como Viktor Orbán endurece agora as suas posições em relação ao conflito na Ucrânia, preferindo o alinhamento com Trump e Putin. O líder húngaro já não esconde o seu desacordo com as posições dos restantes europeus. E se no passado acabou por não usar o seu direito de veto, em troca de alguns milhões de euros de fundos estruturais, cresce agora a preocupação de que, num momento crítico, decida usar essa “arma” e paralisar decisões importantes, que só podem ser tomadas por unanimidade de todos os membros.
O exemplo autocrático de Trump tem servido de combustível para a corrida autoritária de Benjamin Netanyahu em Israel. Acossado, há muito, por problemas judiciais, o primeiro-ministro israelita decidiu agora radicalizar ainda mais as suas posições. E dispara para vários lados (muitas vezes, infelizmente, de forma mais literal): já não esconde os seus planos para a anexação de Gaza, ao arrepio de todo o direito internacional, e está em intensas movimentações para aniquilar a independência do poder judicial.
Na Turquia, outro homem-forte, Recep Tayyip Erdogan, aproveitou o atual caos internacional para procurar perpetuar o seu partido no poder. Depois de anos e anos a ganhar o controlo do Estado turco, dos tribunais às universidades, passando por uma revisão da Constituição e sucessivas purgas de opositores, Erdogan levou agora o descaramento até ao ponto mais alto: impedir, através de diversas artimanhas, que o presidente da Câmara de Istambul, e seu principal adversário, possa sequer apresentar-se às próximas eleições presidenciais.
Na Hungria, em Israel e na Turquia, milhares de pessoas têm saído para as ruas a manifestarem-se contra as derivas autoritárias. Mas os seus gritos e apelos são recebidos com cada vez maior indiferença num mundo em que, pela primeira vez em duas décadas, as autocracias são já mais numerosas do que as democracias (91 contra 88), segundo as contas do Instituto V-Dem. A parte do planeta que os deveria apoiar e defender, como a Europa, está apenas preocupada, neste momento, em ganhar tempo para se conseguir rearmar e à espera que Trump saia de cena daqui a quatro anos. O problema é se, entretanto, ficamos mesmo sem tempo para ainda conseguir salvar o que resta da democracia.
O grau de amadorismo e de irresponsabilidade em que mergulhou a administração Trump ficou bem ilustrado na maneira como, de forma inédita, um jornalista foi informado dos planos de guerra dos EUA no Iémen, ao ser adicionado a um chat na aplicação de mensagens Signal. O que este caso demonstra é que, se não podemos confiar na liderança de Trump, temos aqui um excelente motivo para confiarmos no jornalismo sério e ético: depois de confirmar que estava num grupo em que se partilhava informação secreta, relacionada com a segurança nacional, o próprio jornalista, Jeffrey Goldberg, editor da revista The Atlantic, tomou a decisão de sair da conversa. O jornalismo tem regras!
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