Mesmo que não seja completamente verdadeira, está instalada a ideia de que há cofres cheios no Estado. Aos poucos, foi-se criando a perceção de que o tão falado – e histórico! – excedente orçamental é mesmo tão grande que até pode permitir que, num golpe de magia, o Governo agora entrado em funções consiga resolver os grandes problemas que mais agitaram as ruas, no último dos oito anos de António Costa, como a recuperação integral do tempo de serviço dos professores e a equiparação do subsídio de risco dos profissionais de segurança com os da PJ. E, ainda, numa tentativa de acalmar as ruas, acrescentar um programa de emergência no Serviço Nacional de Saúde, além de promover aumentos para pensionistas e funcionários públicos. Tudo isto, com a promessa imediata de baixa de impostos.
A equação parece, à partida, impossível, mesmo com os cofres supostamente a abarrotar de riqueza. Até porque ninguém tem uma resposta satisfatória à pergunta mais importante: como é possível gastar mais dinheiro em melhores serviços públicos se reduzirmos a receita fiscal?
A verdade é que ninguém, neste momento, parece estar realmente interessado nessa resposta. O tempo é, isso sim, o de procurar ganhar popularidade – tanto no Governo como na oposição. E como é esse o tempo em que vivemos, importa tentar responder a outra pergunta: o que aconteceria se, por magia, existisse mesmo dinheiro para resolver as reivindicações básicas daquelas classes profissionais? O que mudaria, no dia seguinte, na vida dos milhões de portugueses que não são professores, polícias ou profissionais de saúde? Será que, de um momento para outro, as urgências hospitalares passariam a estar todas abertas e a funcionar sem problemas? E que, de repente, deixariam de existir turmas sem professores suficientes para todas as disciplinas? E será que, satisfeita a exigência do subsídio de risco, as forças de segurança se tornariam muito mais ativas, ordeiras e competentes? E até, no limite, fariam descer os índices de criminalidade – que, como se soube esta semana, aumentaram no último ano devido ao crescimento dos casos de “violência doméstica contra cônjuges ou análogos” e da “condução sob efeito de álcool” (é preciso fazer aqui um “alerta: ironia”?).
Acho que todos sabemos as respostas. Os problemas do SNS, da educação e da falta de habitação não se resolvem por decreto e, muito menos, no prazo de 60 dias. Podem e devem ser tomadas medidas imediatas que ajudem a reduzir injustiças, a atender a casos urgentes e a minorar dificuldades dos mais frágeis. Mas não vão resolver, de uma assentada, os problemas de fundo, mesmo que ajudem à popularidade do Governo.
É preciso ter noção das realidades e perceber, por exemplo, que muitos dos problemas que afetam hoje os serviços públicos em Portugal são os mesmos que preocupam as opiniões públicas na maior parte dos países ocidentais. A falta de professores é hoje um problema transversal a quase todo o mundo. A profissão deixou de ser atrativa, tanto nos sistemas que melhor remuneram os docentes como nos que os desvalorizam na folha salarial. E essa tendência não vai ser retardada só porque os docentes mais velhos vão recuperar o tempo de serviço que lhes foi congelado.
Nos últimos tempos de emoções à flor da pele, o SNS também ganhou a fama de se ter transformado num caos. Mas, quem estiver atento minimamente ao que se passa lá fora, depressa perceberá que essa não é uma exceção portuguesa. Há sinais semelhantes em todo o lado. Nesta semana, por exemplo, um estudo realizado no Reino Unido chegou à conclusão de que morrem 250 pessoas por semana, devido às longas esperas por cuidados de emergência.
Num quadro parlamentar difícil, este é o momento em que um governo democrático deve escolher falar verdade aos portugueses, em vez de prometer soluções imediatas e milagrosas. É essa a única forma de se distinguir do discurso dos populistas que apenas estão interessados em espalhar o caos para, dessa forma, se afirmarem como alternativa – e autoritária.
Já se percebeu também que muitas das regras de convivência e até de cordialidade que moldaram a vida política nas últimas décadas quase que desapareceram de um momento para o outro. Tudo aquilo a que o País assistiu no início desta sessão legislativa, com a eleição do novo presidente da Assembleia da República, foi uma espécie de ensaio geral para aquilo a que iremos presenciar ao longo dos próximos meses. Comportamentos que eram considerados inaceitáveis vão passar a ser correntes. E a mentira será usada e banalizada até à exaustão, sem que ninguém verdadeiramente se indigne com isso – porque o vai passar a achar normal.
Ao contrário do que era prática corrente, este governo não vai ter direito ao habitual estado de graça. Mas vai precisar, para sobreviver, de ganhar popularidade. Em defesa do regime democrático, é conveniente que o faça sem ceder ao populismo das soluções fáceis – que, como se descobre sempre depois, são mentirosas.
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