Podemos não nos ter dado conta, porventura por andarmos distraídos com outros assuntos tão “urgentes” como a final da Eurovisão, mais um folhetim futeboleiro ou o 172º sinal de clivagem na “Geringonça”, mas a verdade é que o mundo mudou muito nas últimas semanas. Ou melhor: começou a mudar uma certa ordem do mundo com que, para o bem e para o mal, nos habituámos a viver desde há várias décadas.
A forma como Donald Trump rompeu, a 8 de maio, o acordo nuclear com o Irão assinala o início dessa mudança e dá, igualmente, o tiro de partida para uma série de outras ações que, nos próximos dias e semanas, vai vincar ainda mais o novo papel que os Estados Unidos da América querem desempenhar no jogo global: o de potência com uma visão unilateral do mundo, cuja força se baseia unicamente no seu poderio militar, apenas preocupada com os interesses norte-americanos e desvalorizando as regras da ordem internacional criadas no pós-guerra.
Foi já nesse papel que Donald Trump concretizou, esta semana, a mudança da Embaixada dos EUA em Israel, de Telavive para Jerusalém, à revelia, por exemplo, de todos os seus aliados europeus. E, nos próximos dias, deverá continuar o mesmo caminho em duas tomadas de posição importantes: a que decidirá a sorte do Tratado de Livre Comércio com o Canadá e o México, e o destino a dar à guerra tarifária com a Europa. Pelo caminho, vai dar ares de grande estadista, debaixo dos focos globais, quando se encontrar (se não mudar de ideias, entretanto) em Singapura, a 12 de junho, com Kim Jong-un para discutir o futuro nuclear da Coreia do Norte, cujo líder parece manter, em simultâneo, conversações cada vez mais estreitas com os vizinhos de Pequim.
É verdade que o Presidente dos EUA já tinha rasgado acordos e compromissos assumidos, no passado, por Barack Obama. Fê-lo, nomeadamente, com o Acordo de Paris, sobre as alterações climáticas, sublinhando o seu isolamento em relação ao resto do mundo. Mas, apesar do coro de protestos, nessa altura não soaram propriamente os alarmes, até porque as consequências desse ato só serão visíveis daqui a alguns anos.
No caso do acordo nuclear com o Irão – uma das obras finais do mandato de Obama, que conseguiu conciliar os interesses norte-americanos com os da Rússia, China, França, Alemanha e Reino Unido –, as consequências começam já a ser visíveis. Pela primeira vez, vemos os aliados atlânticos a afirmarem abertamente que deixaram de confiar em Donald Trump. A chanceler alemã Angela Merkel foi a primeira a dizê-lo, numa posição imediatamente secundada pelo francês Emmanuel Macron que, ainda há poucas semanas, se revelava incapaz de conseguir esconder a admiração que nutria pelo atual Presidente norte-americano, para desconforto de muitos dos seus compatriotas e também de vários estadistas europeus. A clivagem entre a Europa e os EUA é cada vez maior e por uma única razão: apesar de todas as diferenças que possam existir entre eles, os líderes europeus querem mostrar-se ao mundo como personalidades em quem se pode confiar. Donald Trump está-se nas tintas para isso.
E se os europeus deixaram de confiar na América de Trump, o que dizer dos povos de todos os outros países que só recentemente se aproximaram da ordem internacional? No caso do Irão, por exemplo, este rasgar do acordo pode significar o fim de qualquer tentativa tímida de abertura do regime e um argumento poderoso para fazer crescer o apoio dos setores mais conservadores. E se Trump foi capaz de quebrar o acordo com o Irão, quem pode garantir aos norte-coreanos que qualquer compromisso sobre o seu programa nuclear será respeitado?
Ao insistir neste caminho unilateral, alérgico a compromissos ou a negociações, a América deixa de basear o seu poder na influência e limita-se a exercer apenas o da força. E esse é o caminho para um mundo muito mais perigoso – outra vez.
(Editorial da VISÃO 1315, de 17 de maio de 2018)