Há menos de dez anos, Lula da Silva era visto como o político mais popular do planeta. E o mais inspirador. Não há aqui nesta afirmação qualquer demagogia ou ilusão de ótica: o autor dessa declaração, proferida em 2009, era, então, o político mais mediático do planeta, Barack Obama, ainda a dar os primeiros passos na Casa Branca, com um programa que representava, nesses tempos, um fluxo de otimismo e esperança num mundo abalado por uma das maiores crises económicas e financeiras de sempre. Mas, nessa época, nem mesmo Obama tinha qualquer hipótese perante Lula, como se viu, aliás, quando ambos se deslocaram a Copenhaga para a reunião magna do Comité Olímpico Internacional, onde iria decidir-se a sede dos Jogos de 2016, com o Presidente americano a defender a candidatura de Chicago e o brasileiro a querer demonstrar que o Rio de Janeiro estava preparado para ser a primeira cidade da América do Sul a ter a honra de organizar o maior acontecimento desportivo do planeta.
Claro que Lula ganhou (não só a Obama mas também às candidaturas de Tóquio e de Madrid).
Ele era o “cara” com quem todos os líderes mundiais queriam “aparecer junto na foto”. Ele era o rosto do incrível renascimento do Brasil, que parecia, então, ir cumprir finalmente a profecia de Stefan Zweig e ser mesmo o “país do futuro”. Tinha tudo para o ser: enquanto o resto do mundo se afundava numa dolorosa recessão, a economia brasileira crescia a uns invejáveis 7,5% ao ano. E fazia-o com o seu Presidente (apesar de dois mandatos marcados por vários escândalos e acusações) a ostentar a aprovação de 80% da população. Havia, objetivamente, razões para isso: durante os seus anos no Palácio do Planalto, o desemprego nas grandes regiões metropolitanas tinha sido reduzido para metade e o salário mínimo tinha aumentado para mais do dobro; nesse período de tempo, cerca de 32 milhões de pobres passaram a ser considerados de classe média e o número de beneficiários dos programas sociais quadruplicou. A economia crescia de tal forma que o Brasil até conseguiu liquidar a sua “eterna” dívida externa e passou ele próprio a emprestar dinheiro ao Fundo Monetário Internacional. E numa época em que se popularizava a expressão BRIC para assinalar os novos países em ascensão, o Brasil era o único – entre a Rússia, a Índia e a China – que podia orgulhar-se de aliar o desenvolvimento económico à democracia e a políticas de inserção social bem-sucedidas.
É verdade que não foi tudo obra de Lula. Grande parte dos resultados económicos ficou a dever-se, em larga medida, aos planos e bases deixados pelo seu antecessor, Fernando Henrique Cardoso. E também é inegável que o Brasil beneficiou de condições internacionais quase irrepetíveis, como o impulso dado pela entrada da China no comércio mundial, além da descoberta de novas e enormes reservas de petróleo nas suas águas territoriais. E também é tragicamente verdade que, ao mesmo tempo, foi crescendo em paralelo o monstro da corrupção que há muito infetava a economia e a política brasileiras – e que hoje, no meio de uma quase guerra civil judicial, deixa o país numa das maiores crises de identidade da sua história.
Neste processo, há duas evidências gritantes: a primeira é a de que o PT de Lula, e depois o de Dilma Rousseff, deixou-se enredar (e afogar) numa teia de corrupções generalizadas (é preciso esclarecer que nada foi encontrado nessa matéria em relação a Dilma). Mas também é por demais evidente que o processo do apartamento tríplex que atirou Lula para a cadeia é de uma fragilidade assustadora, preocupante, e que descredibiliza, só por si, a justiça brasileira, como se percebe por muitas reações da imprensa internacional. Há menos de dez anos, repito, Lula da Silva era o político mais popular do planeta. E o rosto de uma esperança que inspirava o mundo. Era impossível não ter simpatia pelo antigo operário, quase sem instrução, que depois de várias lutas e eleições perdidas tinha conseguido fazer renascer o Brasil e ser admirado em todo o mundo – exceto, claro está, entre os que nunca aceitaram que alguém vindo de tão baixo pudesse subir tão alto, contrariando a “ordem estabelecida” da clivagem social brasileira. Apesar de tudo, continua a ser muito difícil não renovar o respeito por ele quando o vemos a entregar-se às autoridades, sem vacilar nas suas convicções e prometendo dar luta a todos os que o acusam. O seu último discurso, perante uma multidão de apoiantes, é uma peça de oratória com todos os ingredientes para ficar na História.
Lula tem, a partir de agora, a missão de demonstrar que não é o “ladrão” que quiseram colar-lhe ao nome. Se o conseguir, engrandecerá o mito. Se falhar, deixará cravada mais uma ferida na esperança.
(Editorial da VISÃO 1310, de 12 de abril de 2018)