Mais perigoso do que o clima de hostilidade e de confronto em que o futebol português mergulhou nos últimos anos é o estado de impunidade instalado que permite, de forma cúmplice, que, uma a uma, vão sendo ultrapassadas as linhas vermelhas do incitamento ao ódio e à violência. Por mais graves que sejam os atos, por mais incendiárias que sejam as palavras, já todos sabemos que não vamos ver alguém ser castigado por ter feito ameaças ou por ter instigado agressões. Pior ainda: à medida que a tensão vai subindo, que a violência verbal se banaliza e que o o ambiente se torna mais contaminado, vai diminuindo perigosamente a censura social a muitas práticas e atos que, há não muito tempo, a sociedade considerava condenáveis.
Em Portugal, sejamos francos, mergulhamos num silêncio e numa tolerância cúmplices com todos os desvarios provocados pela competição futebolística. Passámos a considerar “normal” assistir, diariamente, a acusações constantes entre dirigentes de clubes e seus funcionários. O insulto livre e gritado passou a ser uma arma “banal”, de defesa ou de ataque, numa qualquer discussão que envolva o resultado de um jogo. O País, no seu todo, deixou de preocupar-se com as notícias de agressões aos árbitros e já não se escandaliza quando assiste a autênticas batalhas campais entre grupos de adeptos, tanto dentro como fora dos estádios. A agressão, o insulto e o destilar do ódio passaram a ser considerados “habituais”, desde que o assunto seja o futebol.
É neste contexto que deve ser observado e lido o discurso do presidente do Sporting Clube de Portugal, após a vitória esmagadora que obteve na assembleia-geral do seu clube, no último fim de semana. De forma calculada, a jogar em “casa” e a falar para os membros da sua tribo clubística, Bruno Carvalho ultrapassou mais uma linha vermelha nesta escalada guerreira e de confronto: declarar guerra à comunicação social e aos jornalistas, apresentando-os como inimigos e chegando ao ponto de “proibir” os seus seguidores de comprar jornais ou ver outros canais televisivos que não a TV oficial do clube. Se alguém duvidasse que isso não foi um incitamento ao ódio e à violência, o resultado imediato dessa ação foi esclarecedor: a tentativa de agressão aos jornalistas presentes no local, numa reação vingativa a fazer lembrar outras semelhantes ocorridas em alguns comícios de Donald Trump, na sua campanha eleitoral para a Casa Branca.
Apesar das queixas dos visados e dos lamentos, mais ou menos tímidos, de algumas individualidades, a verdade é que a ocorrência de um ato tão grave como o do incitamento ao ódio e à violência não teve, nos dias seguintes, por parte de quem tem o dever de pugnar pela segurança, qualquer punição ou consequência inibitória. Apenas a reação do costume: os habituais apelos pífios à serenidade e ao diálogo.
Mais uma vez, o país político preferiu não se imiscuir nos assuntos do futebol – isso fica reservado para os momentos em que se pode celebrar uma grande vitória caseira ou internacional. E, como sempre, a Justiça seguiu em marcha lenta, como quem tolera tudo isto como factos normais, enquanto noutros países, como o Reino Unido, por exemplo, os apelos ao ódio e à violência são imediata e severamente condenados em poucas horas, caso seja preciso, só para que não se voltem a repetir.
Por cá, continuamos neste estado de impunidade – do “vale tudo porque não me acontece nada” –, principal responsável pelo crescimento deste clima de hostilidade e confronto. Com os três clubes “grandes” a disputarem, taco a taco, o título nacional, a apenas 11 jornadas do fim, não vai ser difícil adivinhar os próximos capítulos. Mas a tragédia, se ocorrer, não poderá ficar impune.
(Editorial da VISÃO 1303, de 22 de fevereiro, de 2018)