Durante a década em que estive no jornalismo económico a acompanhar a área das bolsas e dos mercados financeiros, vi insuflar duas bolhas delirantes e vi-as também estourar com espalhafato e consequências trágicas, levando atrás de si todos os “últimos parvos”. Os “últimos parvos” são, na gíria do setor, os que só tarde entram numa festa que todos sabem que tem os dias contados – aqueles que ficam depois com a batata quente na mão quando alguém grita “rebenta a bolha”. Lembro-me, durante a histeria das dotcoms, de arregalar os olhos inexperientes ao entrevistar “especialistas” que juravam a pés juntos que todos os clássicos e racionais rácios de avaliação de empresas tinham de ser esquecidos porque eram coisa de velhos (esses que, contas feitas, ditavam avaliações ínfimas em vez dos valores astronómicos a que alguns títulos – as Amazons e as PT Multimédias – chegaram durante a bebedeira coletiva). Os “parvos”, esses, foram aos milhões, bem nos lembramos, deixando um rasto de destruição de valor após os crashes de 2000 e de 2008.
Se há regra nos mercados que é certinha como o destino é a de que não há índice que suba para sempre. Mais dia menos dia, vem de lá correção, tomada de mais-valias e quedas garantidas – olhando para trás, é bem fácil de perceber que isto é dois passos para a frente e um para trás (só para pegar no título de Lenine de 1904 e invertê-lo). E bastava olhar os gráficos para perceber que o céu estava a prometer chuva. Nos últimos dias, voltaram a acender todos os alarmes vermelhos nas bolsas. Depois de seguir de recorde em recorde, em nova histeria coletiva (em 2017, o Dow Jones fechou em valores mais altos de sempre, mais de 70 vezes, algo que nunca tinha acontecido em nenhum ano anterior na sua história), o principal índice da Bolsa de Nova Iorque registou a pior queda em 6 anos (4,6% num só dia), arrastando atrás de si os mercados em todo o mundo.
Mas o que é de salientar nesta correção é o facto de não ter sido determinada por um colapso bancário nem por um ataque terrorista, mas por boas notícias económicas (sim, boas, leu bem): o valor dos salários americanos está a subir à velocidade mais rápida desde a recessão. O que pode parecer um paradoxo, é, afinal, a mais pura teoria económica a funcionar. Com salários mais altos vem tradicionalmente mais inflação, e com mais inflação os bancos centrais têm tradicionalmente de subir taxas de juro. Ou seja, os mercados encaixaram de vez a ideia de que a era do dinheiro fácil, alimentada por taxas de juro historicamente (e estupidamente) baixas, está mesmo a chegar ao fim. Depois da crise da Lehman Brothers, se os bancos centrais não tivessem entrado a apagar o fogo encharcando as economias de liquidez, as consequências da crise financeira teriam sido muito mais graves, com pânico e falências generalizadas. Mas o que deveria ter sido uma solução temporária de emergência acabou por se eternizar: ficou a torneira do dinheiro aberta, a jorrar durante quase uma década. Este cenário penalizou os pequenos aforradores norte-americanos e europeus (que viram as suas poupanças remuneradas com quase nada) e encheu ainda mais os bolsos dos mais ricos (que viram o valor das ações e do imobiliário disparar – vide a bolha dos preços das casas…)
Parece pois mais do que certo que o dinheiro ultrabarato, com as taxas diretoras do BCE a 0% e as taxas de referência dos créditos à habitação em valores negativos, tem mesmo os dias contados, e isso é bom. A Reserva Federal já começou a subir taxas – aumentou três vezes no ano passado, e já anunciou que espera subir mais três em 2018 – e o Banco de Inglaterra já subiu uma vez e espera-se que o faça novamente em maio ou junho. O Banco Central Europeu tem uma tarefa mais complicada, mas não escapará a começar a fechar a torneira este ano. É bom que nos comecemos a preparar, nomeadamente para o que isso vai significar na fatura que pagamos pelos créditos à habitação. Foi bom enquanto durou (pelo menos para alguns), mas está na hora de nos curarmos da bebedeira coletiva.
(Editorial da VISÃO 1302, de 15 de fevereiro de 2018)