Uma cicatriz é uma marca de vida, não pode ser uma sentença de morte. Há cerca de quatro semanas foi aberta uma ferida profunda, a golpes de fogo e de silêncio de morte, no centro geográfico de Portugal. Está lá agora uma cicatriz de que é impossível desviar o olhar. Nem sequer precisamos de a procurar: ela emerge, em tons de negro e cinza, em cada uma das curvas das estradas que atravessam a zona do chamado pinhal interior, cruzando as povoações e localidades que saltaram para a vanguarda da atualidade mediática durante dias de desespero e estupefação. São quilómetros e quilómetros de troncos de árvores despidas, de terra preta e, à primeira vista, de absoluta ausência de vida. Não se ouve o chilrear dos pássaros nem o rastejar dos répteis, apenas se escuta o som do vento a soprar por entre a folhagem calcinada de uma floresta de eucaliptos. É um cenário triste e desolador que resume, num só golpe, tudo o que de mal se fez no território ao longo de décadas: políticas erradas de ordenamento, abandono completo das atividades tradicionais ligadas à terra, extensões imensas e monótonas de eucaliptos e pinheiros. Tudo, ainda por cima, alicerçado na convicção errada, como se viu, de que é possível combater de frente um grande incêndio, mesmo quando, ainda por cima, ele deflagra no pico de mais uma onda de calor.
A verdade, no entanto, é que a vida naquela região não pode ficar resumida a esta cicatriz. Mais relevante ainda: se continuarmos apenas a olhar para a cicatriz, vamos acabar com o que resta da vida ali. E, nesse caso, as consequências serão ainda piores do que as provocadas pelo incêndio: estaremos a agravar a desertificação, a fuga das populações e, com isso, a multiplicar ainda mais o desordenamento e a acumulação de combustível perdido na floresta, que ficará apenas à espera de mais um dia de temperaturas altas e de uma fagulha perdida para se incendiar de novo.
Ao percorrer os montes e vales das serras da Lousã e do Açor, mesmo em ritmo mais acelerado do que o desejado, não é difícil chegar à conclusão que, embora os incêndios sejam inevitáveis (fazem parte da própria natureza…), as tragédias podem ser evitadas. Percebe-se isso, por exemplo, quando, no meio da desolação, damos de caras com uma aldeia que ficou intacta perante o avanço das chamas. Porquê? Porque os seus habitantes se tinham organizado antes para proteger a orla do povoado e tiveram a sabedoria de manter, nas encostas, as florestas de sobreiros, oliveiras, azinheiras e carvalhos, muito mais resistentes às chamas, como é agora eloquentemente comprovado. Mais importante: tudo isso só foi conseguido porque essa aldeia voltou a ser habitada e dinamizada, nos últimos anos, graças ao empenho de quem continua a acreditar na terra e na agricultura, mas que sabe também reinventar o território e as fontes de rendimento, graças à oferta turística genuína e de qualidade, capaz de atrair um público exigente, culto e amante da natureza e da autenticidade.
Felizmente, há muitos outros bons exemplos, naquela região, de preservação do ambiente e de respeito pelo território. Mais do que para a cicatriz, é para esses sinais de vida e de persistência que temos de olhar e, na medida do possível, acarinhar. São eles que, pelo exemplo, poderão restituir a confiança e a esperança numa área ainda a recuperar do choque, e que não pode ter como única solução de futuro o ficar entregue à caridade ou solidariedade de quem está longe. Todos nós podemos fazer muito mais e de forma ativa. Embora nem sempre nos lembremos disso, ali entre o Zêzere e o Mondego, por serras e vales, há uma natureza exuberante, uma cultura riquíssima, um património bem conservado e uma série de heróis, muitos deles estrangeiros ou vindos das cidades grandes, que insistem em recuperar aldeias abandonadas e a transformá-las, graças ao turismo. Têm-no feito, é preciso dizê-lo, de uma forma exemplar, segundo os mais altos padrões internacionais. É por eles que tem que começar a reconstrução e revitalização da região. E, mais do que com a nossa ajuda, eles devem contar, isso sim, com o nosso apoio e participação.