Era uma vez um homem preso no campo de concentração de Buchenwald. No antro de morte nazi estava com ele outro sujeito macilento, ambos eram cadáveres humanos corroídos pela fome, pelo frio e pela doença. Esse homem era matemático, falava do pi e de temas fascinantes da álgebra, sem que fossem acompanhados pelo primeiro, que tinha apenas o sétimo ano. Certo dia, o matemático colocou-lhe um desafio. Propôs-lhe que resolvesse um enigma. Durante vários dias, o homem pensou no quebra-cabeças, mas não conseguiu descobrir a solução. Quando voltou a encontrar o companheiro, pediu-lhe que a revelasse. O matemático recusou-se, dizendo que deveria ser ele descobri-la sozinho.
Mais dias passaram com a morte sempre à espreita, novas tentativas, sem que o homem visse a luz nem o matemático lhe desvendasse o mistério. Guardava o segredo como se fosse uma preciosidade.
O prisioneiro tentou conter a curiosidade, focar-se afinal na prioridade de sobreviver, mas não conseguia: tornou-se obcecado pela descoberta da resposta. Dias passaram, e o matemático acabou por lhe propor revelar-lhe a solução se ele lhe desse a sua côdea de pão. Não se sabe quanto pesava na altura, mas quando as tropas americanas invadiram o campo libertando os prisioneiros, o homem não passava dos 38 quilos. Ainda assim, dias antes acabou por abdicar do seu único alimento capaz de o manter vivo para ver decifrado o enigma, porque não conseguia mais reprimir o seu desejo de conhecimento.
Leonard Mlodinow sabe como agarrar um leitor, e a história que conta é a do seu pai, na abertura do livro De Primatas a Astronautas. Nesta obra fascinante que li há meses, o físico explica como o homem evoluiu das cavernas ao Cosmos numa viagem inspiradora pelo progresso do conhecimento e do desenvolvimento da Ciência. Porque me lembrei dela agora, pensará o leitor. Há tanta coisa a acontecer merecedora de atenção. Theresa May vai começar a apresentar o plano de saída para o Brexit, e começa o desmembramento da União Europeia. Marcelo Rebelo de Sousa aprova a polémica TSU que divide patrões e partidos. Reunidos em congresso, os jornalistas traçam cenário desolador da profissão. BCP dispara mais de 20% em bolsa depois do aumento de capital, disfarçando por breves instantes a agonia geral no setor. Pior: enquanto escrevo estas linhas, faltam três dias para a tomada de posse de Trump e isso parece-me o fim do mundo tal como o conhecemos.
E, afinal, entre tantas as histórias “obrigatórias” da semana, a que não me saiu da cabeça foi só uma. Singela, mas fascinante: uma misteriosa onda gigante foi detetada na superfície de Vénus. A descoberta foi publicada numa revista científica onde se tenta uma explicação – o fenómeno pode dever-se ao fluxo da atmosfera do planeta sobre a superfície montanhosa, mais ou menos o mesmo que acontece com as ondas de superfície que se formam quando a água discorre sobre um leito. Parece-me uma imagem poética.
“A mais bela e profunda experiência que um homem pode ter é a sensação de mistério. É o princípio fundamental da religião, bem como de todo o esforço sério que está na base da arte da Ciência. E quem nunca passou por esta experiência ou está morto ou está cego”, já dizia Einstein. Por estes dias – será exagero chamar-lhes negros? – talvez não seja má ideia navegarmos antes pelos enigmas do Cosmos, pelas incógnitas da Ciência, pelos recantos do conhecimento. Adotarmos a postura daqueles que os decifraram, como descreveu Mlodinow, mudando a perspetiva com que se olha para os problemas para lhes dar outro sentido, investindo no pensamento flexível e anticonvencional, tendo paciência (muita) na abordagem, mas também falta de fidelidade àquilo que todos os outros acreditam. E ainda, como tantas vezes na História, evadirmo-nos na arte, escapando e fazendo pontes para a diferença através do belo, como propõe António Filipe Pimentel, diretor do Museu Nacional de Arte Antiga, em entrevista publicada na Revista VISÃO desta semana, já nas bancas.
Talvez assim, com sorte, consigamos sobreviver aos dias de desalento.
(Editorial publicado na VISÃO 1246, de 19 de janeiro)