Hoje, começo pelo título. Será possível comer carne sem recorrer a animais? E aqui, eu não falo de substituintes vegetarianos da carne, como o seitan. Falo efetivamente de carne. E se fosse possível criar carne em laboratório, sem ter de recorrer a animais? Parece ficção científica, eu sei. A carne vem dos animais. Como é suposto obter carne sem o seu sacrifício? Mas a resposta é que sim, é possível e já esteve mais longe de chegar ao mercado.
Vamos começar pelo início. Há algo que precisamos de retirar aos animais para que o processo seja possível. Falo de células estaminais. Uma célula estaminal é uma célula com uma capacidade de multiplicação quase infinita e que pode diferenciar-se em qualquer tipo de célula. Nesse processo de diferenciação, as células ganham as características do tecido a que pertencem. Vamos imaginar uma célula muscular. É completamente diferente de uma célula sanguínea ou de um neurónio. Mas todas elas partiram de células estaminais, que se diferenciaram em diferentes tipos de células.
Se partirmos de células estaminais, podemos criar as condições para que se multipliquem, e na altura certa, podemos fazer com que se diferenciem nas células que pretendemos. Isto tem aplicações em medicina por exemplo, na medida em que é possível criar um órgão através deste processo. Agora, pensemos na carne que comemos. Na sua maioria, é tecido muscular, com uma percentagem de tecido adiposo (ou caso prefiram, gordura) e algum tecido conjuntivo (o tecido que liga as células entre si). Se partirmos de células estaminais, podemos levá-las a reproduzir estes tecidos. E mais, se controlarmos a constituição exata dessa carne, podemos controlar o sabor, a textura ou valor nutricional de cada bife. Mas se parece tão perfeito, então porque ainda não o fazemos? A resposta é simples. Em primeiro lugar, a produção em larga escala ainda está em processo de desenvolvimento. E em segundo lugar, para que esta carne seja comercializada, o seu preço tem de ser competitivo com a carne de origem animal. Ainda que o processo esteja cada vez mais barato, ainda não está ao nível da carne que consumimos. Não obstante, há um restaurante em Singapura que já vende este tipo de carne e mais certamente se seguirão.
Para além das preocupações com o bem-estar animal, o setor da pecuária tem uma pegada ecológica que é muito significativa. Em emissão de gases com efeito de estufa, em consumo de água, em desflorestação. Há ainda várias doenças infeciosas que nos foram transmitidas pelo consumo de carne animal: a gripe aviária H1N1, o SARS, a doença das vacas loucas, o COVID-19. Não seria mais seguro usar carne produzida em laboratório num ambiente 100% controlado? Usam-se também aditivos, hormonas, antibióticos e mais substâncias nos animais para que cresçam rápido e com saúde. É possível que essas substâncias tenham impacto na nossa saúde. Há já estudos que as ligam a maiores incidências de cancro. As vantagens parecem óbvias e a população humana confia nos laboratórios para desenvolverem os seus medicamentos. Estarão também prontos para confiar neles a sua comida?
Baseado em: https://www.nature.com/articles/s43016-020-0112-z
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