Tem sido tema de debate a possibilidade de se reduzir a semana de trabalho dos actuais 5 dias para 4 dias. Diversos autores e diversas instituições têm produzido estudos, livros e relatórios onde tentam demonstrar a desejabilidade e a exequibilidade dessa mudança. Por um lado, é argumentado que essa redução é benéfica para os trabalhadores, permitindo-os fazer uma melhor gestão da vida profissional com a vida doméstica. Por outro lado, para os gestores e para a saúde das organizações, argumenta-se que se reduzirão as baixas médicas, o absentismo ou a rotatividade do pessoal, ao mesmo tempo que aumentará a criatividade, a inovação, a lealdade e a produtividade.
Alguns projectos piloto que têm sido postos em prática (em países como os EUA, o Canada, a Irlanda, o Reino Unido ou mesmo Portugal) têm trazido resultados promissores, em linha com as previsões. Mais, muitas das objecções que são levantadas, nomeadamente a de que não há disponibilidade financeira e de recursos humanos para tal transformação, são exatamente as mesmas que foram aduzidas quando se pretendeu acabar com a escravatura, quando se começou a definir uma jornada laboral máxima ou se processou a sua progressiva redução para as 40h ou 35h, numa lógica de semana de 5 dias de trabalho e 2 de descanso. Como se sabe hoje, essas objecções não tinham cabimento. Não só foi possível fazerem-se as ditas transformações como a riqueza mundial produzida nunca foi tão grande como agora.
Por tudo isto, este movimento tem ganho força. Mais, é ainda possível argumentar que, numa era de crise ambiental, a redução do tempo de trabalho liga bem com o combate ao efeito estufa, na medida em que se desvia um pouco o foco da produção que tanto tem poluído o mundo.
Se esta mudança se der a nível global, é legítimo prever-se um aumento generalizado da felicidade. Mais tempo livre sem perda de rendimento (é isso que os projectos pilotos nos têm demonstrado) é uma receita certa para ganhos de bem-estar.
Porém, há, hoje, uma dificuldade que não existia no séc. XX, quando estes processos de regulação do tempo de trabalho se deram: a globalização e a digitalização. Um e outro fenómenos têm trazido, nomeadamente no séc. XXI, o contrário do necessário para caminharmos para a semana de 4 dias: um mercado de trabalho cada vez mais desregulado, fragmentado e imprevisível. O trabalho para as plataformas é paradigmático: ausência de contrato de trabalho, remunerações baixas por tarefa e desregulação horária, tudo redundando em jornadas de trabalho diárias e semanais longas e pouco proveitosas (6 dias por semana, 10h por dia, para obter um vencimento pouco maior que o salário mínimo). E quem pensa que o trabalho plataformizado é para as baixas qualificações, desengane-se: é possível pôr médicos, professores, arquitetos ou advogados a trabalhar à peça através de uma plataforma digital sediada num qualquer canto do mundo, segundo as mesmas lógicas precarizadas.
Assim, temos um paradoxo: se há boas razões (de felicidade, ambientais e com sustentação económica) para que se progredisse, no séc. XXI, para uma semana de trabalho mais curta (J. M. Keynes, nos anos 30 do séc. XX, achava que tais reduções já estariam efectivadas no presente), muitas tendências do mercado de trabalho mundial vão no sentido oposto – mais instabilidade e mais necessidade de se trabalhar muito para se “ganhar a vida”. Pelo caminho, há ainda um perigo adicional: se a semana de 4 dias for implementada em cetos nichos do mercado de trabalho (nas organizações com alto valor acrescentado) enquanto tudo piora nos outros sectores, agravam-se as desigualdades. Se a semana de 4 dias se transformar num luxo, o produto final, seguramente, não será a felicidade geral.
PS: nos próximos dias 27 e 28 de junho vai decorrer na Reitoria da Universidade do Porto um encontro internacional sobre a semana de 4 dias, com a participação de especialistas internacionais. Inscrições em: https://isociologia.up.pt/eventos/semana-de-4-dias-encontro-internacional
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