As instituições, especialmente quando são do Estado e são cimeiras na sua área de atuação, são literalmente legitimadoras, criadoras de patamares de oficialidade e de oficialização. Uma Biblioteca Nacional, ao ter como função central a recolha e a conservação do património editado, tem o condão de definir o que é relevante nesse campo. No caso português, a Biblioteca Nacional de Portugal encetou, há já vários anos, uma aproximação ao legado e herança islâmica na cultura portuguesa através de um grupo de exposições temáticas, em que “A mil e uma noites em Portugal”, em 2018, deverá ter sido a que teve mais visibilidade mediática.
Muito foi tratado nessas exposições mas, com a exposição inaugurada no passado dia 25 de setembro, deu-se um salto de valorização cultural muito significativo. Do passado distante, o objeto agora são as comunidades hoje existentes e a sua produção escrita. Na nossa cultura, dar foro de legado escrito é hipervalorizador e implica o assumir, pelo coletivo, através desta importante instituição, de uma dignidade que só atribuímos ao que é letrado.
O comissariado desta “Publicações Islâmicas em Portugal” é de Pedro Soares, Fabrizio Boscaglia e AbdoolKarim Vakil, que nos apresentam um quadro sistemático e muito bem organizado da produção impressa das comunidades islâmicas portuguesas contemporâneas, desde 1968 até 2024.
Como afirmam os comissários no texto de apresentação da exposição, “Ao longo deste período, mais de meio século, essa presença foi acompanhada por uma expressiva atividade editorial, materializando em livros, revistas, panfletos e outras publicações as transformações por que passaram os muçulmanos em Portugal. Esta mostra/exposição pretende olhar, de forma transversal, o conjunto dessas publicações, na medida em que traduzem o percurso da presença islâmica no Portugal contemporâneo, sendo dele reflexo e contribuindo, simultaneamente, para o moldar.
A atividade editorial dos muçulmanos tem, por um lado, funcionado como pedagogia, criando um lugar de diálogo entre muçulmanos e não-muçulmanos e abrindo espaço para o Islão numa sociedade que só recentemente começou a conviver com a diversidade religiosa. Por outro, ela é também um retrato de dinâmicas internas, de uma comunidade que, enquanto procura uma voz e uma identidade comuns, também se diversifica e se multiplica: segundo diferentes origens étnicas e nacionais, diferentes escolas doutrinais, diferentes formas de se ser muçulmano e de expressar essa religiosidade, inclusivamente através da literatura e da poesia.”
Contudo, além da exposição, em si, que é um marco no olhar para o Islão português, merece destaque a pessoa do académico, do homem de cultura e do cidadão que, ao longo dos últimos anos, tem estado no centro de cerca de uma dezena de exposições sobre aspetos da cultura, da literatura, da poesia e da arte islâmicas em Portugal. Seja na Biblioteca Nacional de Portugal ou no Museu Calouste Gulbenkian, Fabrizio Boscaglia tem levado a cabo um trabalho de estudo e de comunicação da cultura muçulmana que é, acima de tudo, um trabalho consistente de interface entre a erudição e a cultura popular, a cidadania conhecedora e crítica, trazendo para a visibilidade dimensões que muitos de nós nem imaginávamos.
Num labor recatado, mas sólido e contínuo, Fabrizio Boscaglia criou um lugar da cultura islâmica na cultura portuguesa, especialmente através do trabalho que desenvolve a partir da Universidade Lusófona, onde organiza, há cinco edições, o “Seminário Permanente de Estudos Islâmicos”, um espaço de debate único no panorama nacional e raro a nível internacional.
O questionamento, acompanhado do conhecimento, tem sido sempre a tónica do que nos tem apresentado o Fabrizio Boscaglia. Assim, desejamos que o seu trabalho frutifique e que seja, como está a ser, uma pedra importante no edifício do diálogo e de conhecimento das culturas que nos tornam únicos, valorizando o diálogo e a diferença, conseguindo encontrar aí a capacidade para ser mais e melhor.
MAIS ARTIGOS DESTE AUTOR
+ O outono e a primavera dos jacarandás. Uma metáfora da Lusofonia
+ Os “Becos da Memória” que nos traz Conceição Evaristo
Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.