Na junção entre a Química e a Poesia, o ar que respiramos é mais que o oxigénio que nos permite a vida. A Vida, a verdadeira, maiúscula, aquela que nos distingue dos restantes mamíferos, essa, respiramo-la também, mas vem-nos da vontade coletiva, do sentir de muitos, das vontades que nos transcendem, que são mais que nós.
É o “estado a que chegamos”, como nas palavras que Salgueiro Maia usou para convencer os seus homens a irem com ele até Lisboa na madrugada de 24 para 25 de abril de 1974. E, contudo, na mitologia da revolução de abril, a coluna de blindados parou antes do avanço definitivo. Parou num semáforo antes de entrar no Terreiro do Paço.
Tenha este episódio tido lugar, ou não, ele é simbolicamente a imagem da ideia de uma revolução sem sangue. Mesmo assim, revolução, com muitas voltas, muitas alterações.
E é aí que reside o dramático problema da memória. Se comparados todos e qualquer índice, tudo nos diz que o Portugal pós-revolução é imensamente melhor que o anterior. Contudo, o ar que se respira não resulta num contentamento coletivo, num estado de espírito positivo, mas sim numa zanga constante que nos coloca no “estado em que estamos”, regressando à frase de Salgueiro Maia.
A memória é dos fenómenos mais complexos de entender. Ela é seletiva e tende para ser funcional através de marcadores. A memória não existe como uma despensa onde tudo colocamos criteriosamente para que tudo esteja acessível. Não, a memória é um sótão, com zonas esconsas, onde só chegamos através de portas, muitas com segredo.
O esquecimento é uma ferramenta que hoje se revela perturbador quando vemos tantos de nós passarem ao lado da tomada de consciência entre o antes e o depois. De nada os índices de qualidade e de desenvolvimento servem, se o ar que respiramos for putrefacto.
Sobre a escalada dos populismos, há cerca de cinco anos, Noam Chomsky dizia que a vacina que o Ocidente tomara com a II Guerra Mundial, estava a ficar fora de prazo. O seu efeito dissuasor estava a passar.
Ainda respiramos abril, ou já colocámos a revolução no campo da memória a que apenas acedemos com essas chaves que, aparentemente, perdemos?
Os manuais escolares são isso mesmo: um lugar de memória que socialmente queremos transmitir às gerações vindouras. E abril lá está, nas páginas dos manuais. Mas onde está a poesia que transforma uma data em ar para respirar?
Será o 25 de abril uma peça do museu da memória, à qual apenas corresponde uma legenda genérica, já sem grande intensidade para criar adesão? Ou será o 25 de abril, por isso mesmo, o motor que tanto precisamos para transformar o ar que respiramos em algo mais que oxigénio, para além de azoto, dióxido de carbono e outros gases percentualmente menos significativos?
Toda a memória precisa de ser atualizada, ressignificada. Transmitida com o desejo, não de se transformar em algo estático, em peça museológica, mas de ser potenciador da mudança que sempre há em nós quando queremos mais e melhor.
A memória de uma revolução, ou é um Processo Revolucionário (sempre) em Curso, ou perdem-se o sentido e o significado dos gestos e dos atos.
Que ar respiramos e para que o respiramos?
Continuamos parados no semáforo à entrada do Terreiro do Paço?
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