Todas as manhãs, quando levo o meu filho à escola, vejo este homem, já de uma certa idade, que caminha pela marginal da Figueira da Foz. Reparei nele porque caminha como se tivesse uma missão, uma meta, um compromisso. Mas, na realidade, vejo-o depois ao longo do dia e caminha sempre e nunca chega ao seu compromisso, nunca cumpre a sua missão. Talvez eu tenha reparado nele pela forma como anda vestido e pela postura do seu movimento. Traz uma pequena mochila às costas, o “daypack” do jargão do material de outdoor. Veste-se como um experiente praticante de trekking, calca o chão como se possuísse o calçado mais ergonómico que o século XXI soube produzir. Está preparado para percorrer o mundo. E talvez seja esse o seu objectivo. Mas, por enquanto, vejo-o todos os dias na marginal da minha cidade.
Esse homem parece ter um segredo que eu também conheço: o caminho conduz à felicidade. Dito assim, parece uma frase esotérica e banal. Mas eu acredito que a actividade de caminhar desperte uma reacção em cadeia no nosso metabolismo que nos torna mais leves e despertos e nos provoca uma serenidade subliminar muito parecida com a ideia de felicidade. Mas para conseguirmos este zen do caminhar também acredito que devemos predispor tempo e distância. Não será nos primeiros quilómetros nem nas primeiras horas que chegaremos a esse estado de libertação e despojamento. Temos de esperar o momento em que passamos a sentir-nos parte do próprio caminho.
Uma vez, surgiu-me a oportunidade de fazer o célebre percurso de trekking do Tongariro Crossing, na Nova Zelândia. E não hesitei. Alterei os planos da minha viagem de modo a poder inserir essa experiência na história da minha vida. O Parque Nacional de Tongariro é um dos mais bonitos pedaços de planeta que podemos visitar exclusivamente caminhando: o percurso atravessa uma passagem entre três vulcões através de lagos, crateras, furnas, prados alpinos, horizontes desmesurados. O território que pisamos é sagrado para os Maori e, dado o seu valor espiritual, foi a primeira paisagem a ser reconhecida pela UNESCO como Património da Humanidade. Tudo o que nos envolve tem uma aura mística de fim do mundo, uma atmosfera primordial, intacta, solene, pré-humana.
A Nova Zelândia baseou praticamente toda a sua identidade nacional no relacionamento respeitoso e pragmático entre humanos e Natureza. Os visitantes sabem que vêm ao país para isso mesmo: uma imersão completa, sem artificialidade, na primeira manhã da Criação. De todos os percursos de trekking que realizei nas décadas, desde a época em que era escuteiro pelas serras de Portugal até essa declaração de sobrevivência que foi a travessia do desfiladeiro do Fish River na Namíbia, recordo o Tongariro Crossing como a mais espiritual experiência de caminhada que vivi. Não seria apenas o itinerário em si, imponente e épico, mas toda a envolvência de uma nação que sabe condicionar com naturalidade aqueles que a visitam a colocar uma mochila às costas e a embrenhar-se nos seus bosques luminosos e nas suas praias desertas, a rondar de perto os seus glaciares soturnos e a observar de longe as suas neves eternas. Empreender a travessia do Tongariro era o prolongamento óbvio do estado de alma que a Nova Zelândia despertara em mim. E ainda hoje, de cada vez que caminho na floresta, de cada vez que vejo uma montanha recortada contra o céu cristalino e frio de uma manhã de Inverno, de cada vez que chego a uma praia onde ainda mais ninguém chegou naquele dia, um bocadinho sensorial de mim regressa à Nova Zelândia e recupera a espiritualidade alcançada na travessia do Tongariro.
Talvez aquele homem que caminha na marginal da Figueira quando levo o meu filho à escola não esteja a preparar-se para percorrer o mundo. Talvez esteja apenas a regressar a uma serenidade subliminar muito parecida com a ideia de felicidade.