O mundo sempre foi um lugar perigoso para as mulheres, o que me custa a aceitar é que as próprias mulheres tornem o mundo num lugar ainda mais perigoso para outras mulheres.
Era apenas uma questão de tempo até o monstro de sorriso simpático e de porte aristocrático que responde pelo nome de Ghislaine Maxwell fosse detida pelas autoridades. A filha do magnata inglês barão dos media, com uma fortuna estimada em cerca de 20 milhões de dólares, irá finalmente responder perante a justiça americana. Ela foi a maior e a mais permanente cúmplice de outro monstro, Jefferey Epstein. Para quem não sabe de quem estou a falar, aconselho que vejam o documentário Podre de Rico, disponível na Netflix. Poucas vezes um título serviu tão bem uma realidade. A realidade do multimilionário era horrível: ele passou décadas a assediar raparigas menores para a prática de massagens com final feliz, como se diz na gíria do universo lúdico, devastando e destruindo centenas de vidas com isso. Não é um documentário bonito de se ver, por isso mesmo considero-o obrigatório, tanto para homens como para mulheres, adolescentes incluídos, porque é fundamental educarmos os nossos filhos para a verdade. É a verdade que nos defende da maldade e nos salva a da ignorância.
Ghislaine era a amiguinha de Jeffrey, partner in crime das suas patifarias, nas quais também participava. Quando as jovens eram aliciadas pelo monstro, Ghislaine desempenhava um papel fundamental para as apanhar na rede; protegia-as e mimava-as, fazia de mãe, de irmã mais velha, de polícia bom, de mentora, de amiga. E quando as vítimas se queixavam, desabafando que se sentiam abusadas, o monstro cúmplice deitava água na fervura e tentava convencê-las da suposta normalidade dos factos, relevando os atos praticados, enquanto lhes acenava com sonhos que, sozinhas nunca conseguiriam realizar: estudos pagos numa renomada escola de artes ou um curso de massagista profissional. Estamos a falar de décadas de terror, de centenas de crimes, estamos a falar de comportamentos desviantes, perversos e criminosos contra menores de idade, e não de atos isolados. Jeffrey e Ghislaine eram adultos perturbados e doentes, sem limites, sem moral e sem empatia que usavam o dinheiro, a boa aparência, o status, as casas, um modelo ultra sedutor de uma vida de sonhos para transformar centenas de vidas em profundos pesadelos.
O processo de Jeffrey Epstein terminou antes de estar concluído, com o alegado suicídio do mesmo, num centro correcional em Manhattan, Nova Iorque, enquanto aguardava julgamento. Como se pode ver no supracitado documentário, as circunstâncias em que se deu o ato não indiciam um suicídio claro, podendo apontar para um homicídio, o que não seria descabido imaginar, dada a estreita ligação de Epstein a personalidades como Donald Trump ou o Príncipe André de Inglaterra, também ele envolvido no escândalo por alegado abuso de uma menor. Com a morte de Epstein, algumas vítimas sentiram uma enorme e pesada frustração. Depois de tudo o que sofreram e sofrem, é legitimo que desejassem que o carrasco fosse castigado. Jeffrey já não estará presente quando Ghislaine for julgada, por isso é possível que a parceira de Jeffrey pague em vida o que o seu melhor amigo não irá pagar.
Recomendo ferozmente a todas as pessoas que assistam ao documentário, para acabar de vez com aquela ideia feita, hipócrita, machista, misógina e errada de que estas coisas acontecem porque as vítimas se põem a jeito. As vítimas destes dois monstros eram crianças a entrar na adolescência, algumas com apenas 14 anos, quase sempre oriundas de bairros pobres, com uma uma infância negligenciada e desfavorecida, algumas já com histórico de abuso sexuais por parte de familiares. É de uma grande cobardia e até falta de caráter argumentar que as rapariguinhas apanhadas e envolvidas nesta teia podiam ou deviam ter alguma noção dos riscos que corriam. A inocência é muitas vezes o caminho mais curto para a perversidade. Estas miúdas podiam ser nossas filhas, nossas irmãs mais novas, nossas sobrinhas. Ghislaine responderá pelos crimes de recrutamento de menores e de ofensas sexuais contra menores, entre outros, além do crime de perjúrio, quando, em 2016, negou qualquer envolvimento nas atividades criminosas de Jeffrey, enquanto decorria o processo de acusação. Aguardemos que a justiça se cumpra. Citando Martin Luther King, o tempo está sempre certo quando é para fazer o que está certo.