A morte apanha-nos sempre de surpresa, não tem ensaio geral, e mesmo quando pensamos estar preparados para a aceitar, é sempre um choque quando ela se atravessa na vida daqueles que amamos ou admiramos.
Portugal é aquele país tão pequeno e tão acolhedor que todos temos, ou pelo menos sentimos, uma relação familiar com as pessoas conhecidas. O Pedro Lima gozava de uma enorme popularidade, certamente muitíssimo acima do que alguma vez terá conseguido imaginar: toda a gente se cruzou com ele, deu dois dedos de conversa, tirou uma selfie, todos temos um vizinho, amigo ou primo de alguém que lhe era próximo, e eu não escapo a esse clichês.
Embora nunca tínhamos trabalhado juntos, éramos amigos e tínhamos uma grande admiração profissional pelo outro. Estava sempre bem disposto, sorridente, era extrovertido e disponível. Quando o convidei em 2010 para ler meia dúzia de short stories por ocasião do lançamento de um livro, o Pedro trocou o dia das gravações para poder estar presente. É esta a ideia que as pessoas vão guardar dele, sempre perto, bom amigo, bom pai, bom filho, bom marido, uma boa pessoa com um bom coração. Ele vestia todas as camisolas de todas as causas. Em 2016, numa produção fabulosa da revista Máxima, assumiu uma capa de super-herói com uns stilettos. É preciso um homem ter muita coragem para se deixar fotografar de saltos altos. E ele tinha.
Mas não quero escrever sobre o Pedro pelo Pedro, quero escrever sobre o Pedro para pararmos todos um bocadinho e tentarmos perceber que mecanismos podemos descobrir dentro de nós para suavizar a angústia e a tristeza que, com o tempo, se transformam numa doença que se chama depressão. Ou, caso seja necessário recorrer à ajuda de profissionais de saúde, para resolver aquilo que não conseguimos sozinhos.
Portugal é dos países da Europa com um índice mais elevado de depressões diagnosticadas, e isto é apenas a ponta visível de um imenso e assustador icebergue. Segundo dados de 2019, mais de 400 mil portugueses sofrem ou sofreram de depressão, e estamos a falar de um período pré-Covid 19. Depois do desaparecimento do Pedro, muitas figuras públicas assumiram as suas fragilidades, relevando que, em algum momento das suas vidas, já sofreram de depressão.
Mas afinal o que é depressão? É, antes de tudo e depois de tudo, uma doença, silenciosa e invisível, como são tantas doenças perigosas que podem tornar-se letais. As doenças graves têm de ser tratadas, não são como uma gripe, que pode passar ao fim de sete dias com remédios e ao fim de uma semana sem remédios. A depressão é o aperto no peito que nos tira o ar e nos rouba a alegria, que se instala como um inimigo dentro da cabeça, que corre no sangue, acabando por minar todas as células. Não a enfrentarmos pode dar cabo de nós para sempre.
Talvez o Pedro se tenha cansado de ser super-herói. E se isso aconteceu, é apenas humano. Ninguém consegue ser perfeito, correto, atento, disponível, competente e exemplar 365 dias por ano, setes dias por semana, 24 sobre 24 horas por dia. Não somos máquinas, somos seres humanos, é próprio do ser humano ter falhas, viver em incoerência, sofrer com a ambivalência, não ter o coração alinhado com a cabeça, não distinguir o sonho da realidade, desejar ardentemente uma coisa e o seu contrário. A perfeição é um falácia, uma armadilha, um monstro inventado pela sociedade moderna, uma espécie de tirania da virtude sem o peso da moral judaico-cristã, que nos tenta obrigar a fazer sempre tudo bem todo os dias, e a fingir que está tudo bem, mesmo quando não está.
Num tempo em que devíamos, mais do que nunca, parar para pensar, em vez de irmos para as esplanadas ignorar o vírus maldito, vale e pena ouvir o coração e tentar perceber onde reside a nosso bem-estar. Se não conseguirmos alcançar uma conclusão satisfatória, podemos fazer o exercício inverso, tentando perceber aquilo que boicota o nosso bem-estar, para tentar evitar ir por esse caminho.
Nem sequer falo de felicidade, que é outra das grandes pragas dos tempos modernos, e que nos faz ficar infelizes, fixados nas únicas coisas que nos faltam, em vez de nos alegramos com todas as outras que já temos. Refiro-me ao bem-estar do quotidiano, aceitando aquilo que não conseguimos mudar, saboreando os abraços e os gelados possíveis, guardando todos os dias o que de melhor a vida nos dá e esperando sempre o melhor daqueles que amamos, mas e sobretudo de nós mesmos, para aprendermos a ser o nosso melhor amigo em vez atuarmos como o nosso maior carrasco.
As pessoas cansam-se e rebentam. Podem implodir ou explodir. Somos apenas humanos, seres imperfeitos e incompletos, nem sempre com os olhos ou o coração aberto para encontrar o melhor caminho. Somos seres frágeis, falhamos com os outros e com nós mesmos. Às vezes, mais vale abraçar a tristeza e usar da tolerância e da paciência com os nossos azares ou defeitos até ao dia seguinte, porque cada dia é como uma nova vida. Abraçar a tristeza é sempre melhor do que fugir dela, porque a tristeza é como uma sombra, só para quando paramos. E só se cala quando a escutamos. E só nos deixa quando a deixamos ser triste, porque um dia ela também se cansa. Mas só conseguimos acreditar que as coisas podem melhorar se tivermos força para ver para lá da rebentação.