No entardecer de 13 de maio do ano de 2020, uma nuvem dourada enfeitou o céu de Lisboa e arredores, fenómeno que foi amplamente reproduzido nas redes sociais, incluindo as minhas, por me deixar ao mesmo tempo extasiada e intrigada com o fenómeno. Fiquei extasiada e intrigada porque não tenho uma conta na rede Twitter, onde, no mesmo dia, vim a saber através de um print screen enviado por um amigo que André Ventura publicou um texto inflamado, alusivo a Nossa Senhora de Fátima, que passo a replicar na íntegra. “A 13 de Maio de 1917 Portugal mudou para sempre. Fomos escolhidos! Também eu senti esta mudança profunda num 13 de Maio da minha vida. Hoje sinto, sei, que de alguma forma a minha missão política está profundamente ligada a Fátima. É este, talvez, o meu grande segredo.”
Quantos mais anos passam, mais o mundo se apercebe que as redes sociais são um veículo poderosíssimo para veicular notícias falsas, criar polémicas, sacrificar carneiros humanos, destilar ódios pessoais etc, etc. É uma espécie de esgoto a céu aberto que contamina a sociedade a todos os níveis e, se não nos pomos a pau, rouba à imprensa séria o seu lugar, que é insubstituível, enquanto quarto poder e pilar fundamental de qualquer estado democrático. Nunca, como agora, foi tão crucial e indispensável ao mundo perceber aquilo que de facto se passa através dos órgãos de comunicação, sob o risco de ver a Humanidade caminhar a passos largos para o buraco negro de um mundo sem informação. O grande problema é que as pessoas confundem a informação que aparece numa rede social com a que aparece num meio de comunicação social credível. Acreditar naquilo que se lê ou vê numa rede social é o mesmo que deixar-se ser operado ao coração por um amola-tesouras. Foi através do poder das redes sociais que loucos como Bolsonaro e Trump foram eleitos. E agora, voltando ao nosso querido Portugal, também é pela utilização destes mesmos meios que André Ventura vai ganhando terreno.
André Ventura não é louco como os supracitados, é muito esperto e profundamente manipulador. Um político que não esconde as suas convicções xenófobas e vai para o Twitter fazer uma declaração de amor a Nossa Senhora de Fátima é no mínimo, grotesco. Sem pejo nem rodeios, afirma que fomos escolhidos, em tom de discurso messiânico, para depois, numa tentativa de criar empatia com quem o ler, afirmar que também ele sentiu uma mudança profunda num 13 de maio. A sério???
Imagino que não terá sido em 1917, pois não é contemporâneo dos três pequenos heróis glorificados pela máquina propagandista do Estado Novo, Jacinta, Francisco e Lúcia. Então quando ocorreu esse mágico instante em que se sentiu o quarto pastorinho? Terá em algum momento este comentador da bola ido a Fátima e, debaixo da azinheira mais famosa do mundo, ter conseguido uma reunião secreta com Nossa Senhora? André Ventura, o representante mais extremista do Parlamento eleito pelo povo, quer também colar-se à Igreja Católica, usando o ícone nacional religioso mais poderoso e popular para o associar à sua “missão política”.
Caro André, sempre o vi como um agitador perigoso e sem princípios, mas por favor, contenha-se um bocado. Aquilo a que chama a sua “missão política” nada tem a ver com os valores da Igreja, nem com os princípios da fé cristã. Tenha juízo e tenha vergonha, porque as pessoas não são estúpidas. Mas se calhar estou a ser injusta. Se calhar apaixonou-se por uma bela moçoila chamada Fátima ao dia 13 de maio de um ano qualquer e é dela que fala. Contudo, ao escolher para o seu post uma imagem da Nossa Senhora de Fátima com as mãos em prece e uma aura divina, leva-me a crer que não foi o caso. Antes fosse, mas não.
Ainda há uma semana, a estrela do futebol Ricardo Quaresma o meteu na ordem com uma mensagem curta, séria, elevada e incisiva, também amplamente divulgada nas redes socias, as minhas incluídas, por considerar que não podemos deixar passar impunes as suas afirmações racistas e xenófobas. Houve quem me dissesse que ao falar de si lhe estava a dar visibilidade. Enquanto cidadã portuguesa e defensora dos ideais democráticos, nunca deixarei de denunciar todo e qualquer tipo de discurso racista ou antidemocrático. Das duas, uma: ou se acha mesmo o quarto pastorinho, e nesse caso está mergulhado em crises de alucinações profundas, pelo que lhe aconselho uma consulta de psiquiatria, ou então apropria-se de forma consciente e calculista de um ícone nacional para angariar apoiantes incautos. Num ou noutro caso, o que fez é vergonhoso. Faz-me lembrar a anedota dos três tipos de malucos: o primeiro que, sabendo da sua condição, vai ao médico pelo seu próprio pé, o segundo, que se acha são, mas ainda assim deixa que a família o leve ao médico, e finalmente o terceiro, cuja loucura é tão devastadora que põe a família toda no médico.
André Ventura, tenha alguma noção do ridículo e não se meta com a Nossa Senhora de Fátima. Basta de tanta demagogia barata, bacoca e torpe. É preciso abrir os olhos e denunciar toda e qualquer manobra demagógica orientada pelo critério do oportunismo fácil.
Já o estou a ver no próximo 13 de maio de 2021, caso tenhamos já vencido a pandemia, a fazer o caminho dos peregrinos com os joelhos graficamente em chaga ardente para chamar a atenção dos media, e, com tal gesto, tentar conquistar o voto de mais umas quantas viúvas crentes e ingénuas. Tenha juízo e deixe-se de palhaçadas, porque como diz o povo, Deus não dorme.