Portugal é, historicamente, um país de baixos salários (aliás, não me espantaria que o diferendo entre Afonso Henriques e a sua mãe estivesse relacionado com uma reivindicação de aumento da semanada). Estamos habituados a chegar ao fim do mês com pouca folga, a trabalhar nas folgas para ter um rendimento extra, a tentar fazer um pé-de-meia, a ir a pé para o trabalho, que a sem chumbo 95 está caríssima, a fazer todo o tipo de ginástica orçamental, nomeadamente a que implica cortar no ginásio, no cinema, no teatro, nos jantares fora e no “vá para fora cá dentro”. Já fomos treinadores de bancada, depois fizemos contas à vida e percebemos que era um part-time muito dispendioso: é caro ir ao estádio, e ainda mais caro subscrever três canais diferentes para ver a bola em casa… Optámos por abandonar o futebol, sem honra nem glória, nem um cheque chorudo. Hoje, em cada português há um ministro das Finanças, capaz de cortar na despesa, e uma Filipa Vacondeus, pronta a aumentar as receitas confeccionadas com sobras do dia anterior. Mais do que apertar o cinto, tornámo-nos cinturões negros em questões de poupança e, mesmo assim, chegados ao fim do dia, não é suficiente. E chegados ao fim do mês, podemos ser despejados. Mesmo depois de cortarmos em todos os luxos, e de termos reinventado a palavra luxo, que passou a ser sinónimo de “despesa absolutamente banal e por vezes até necessária”, não temos grande desafogo. E ir afogar mágoas com amigos é demasiado arriscado. Paga-se mais uma rodada, no calor do momento, e tem de se passar meses ao frio, porque já não dá para a conta da electricidade. Temos saudades dos tempos em que nos recomendavam que não comêssemos bife todos os dias. Por este andar, vão recomendar-nos que não comamos todos os dias. É uma diferença muito subtil, só retiraram o bife. Aguentámos estoicamente, enquanto desesperávamos por uma luz ao fundo do túnel. E finalmente chegou a tão esperada luz. Ei-la! Cintilante, muito intensa. Talvez demasiado intensa. Ah, é um comboio de prestações do crédito habitação, e avança sobre nós, a alta velocidade. De repente, todos os imóveis são de luxo. Sim, até esse T1 em Mem Martins. É como se o Rei Midas tivesse passado por Portugal e tivesse tocado em todos os apartamentos, moradias, até garagens. Transformou-se tudo em ouro. O plano de pagamentos ao banco veio suspender os planos para o futuro. “Se calhar, o melhor é o mais velho deixar a faculdade e irmos todos fazer um curso de sobrevivência. Sim, daqueles em que se passam sete dias no mato, só com um canivete, e caçando para comer.” Vai dar jeito quando tivermos de entregar a casa ao banco: já saberemos construir um abrigo com troncos de madeira. E, vendo o copo meio cheio, vão desaparecer imensos dos nossos actuais problemas: acabam-se as contas para pagar, acabam-se as disputas entre irmãos para ver quem dorme no quarto maior, acabam-se as avarias de electrodomésticos quando não dava jeito nenhum, acaba-se o ruído dos vizinhos, acabam-se as lamentações por não podermos ir jantar fora: a partir de agora, o jantar é sempre na rua.
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