Em 1980, o dia do Corpo de Deus calhou a 5 de junho. Foi uma quinta-feira muito ventosa. Parecia que o demónio andava desinquieto no ar. Eu tinha vestido umas jardineiras azuis e uma t-shirt branca. Estava menstruada, doía-me a barriga. A minha mãe fizera frango e batatas assadas para o almoço e, por ser feriado, havia um bolo de ananás. Morávamos no T1 do J. Pimenta e a casa ficava sempre a cheirar a comida. As aulas tinham acabado há uma semana e eu teria exame final dali a quinze dias. Já não me lembro se o exame era obrigatório ou se eu não tinha dispensado por ter tido negativa a Matemática no 8º ano. A minha cadela Fly, o ser adoravelmente mais feio que conheci, faria um ano dali a um mês e preguiçávamos juntas no sofá. A minha mãe, a cirandar a sua magreza enérgica pela casa, fazia-me lamentar eu não ter herdado os seus genes. Detestava as minhas coxas arredondadas nas calças justas de ganga. Detestava ainda mais as borbulhas que me apareciam na cara. Tinha conseguido comprar o single Call me dos Blondie com dinheiro poupado aos lanches do liceu e passava tardes inteiras a fingir que sabia cantar em inglês. Estava apaixonada pelo Carlos, que havia conhecido num convívio da Faculdade de Veterinária. Era uma paixão inconstante como quase todas as que acontecem aos quinze anos. A Kiki tinha-me tirado uma série de Polaroids com a máquina que uma amiga lhe emprestara e eu colocara uma dessas Polaroids de encontro a uma das molduras com fotografias de família que a minha mãe semeava pela estante, espanejando-as dia sim, dia não. A Kiki e eu espantáramo-nos com o processo da revelação imediata. Assistir ao surgimento lento das imagens fazia com que me parecesse que aquela minha fotografia, encostada às outras, não estava completamente revelada.
Na sexta-feira anterior, o meu pai pedira-me para ir a Lisboa levar uns documentos à sucursal da Baixa do BPA e no regresso demorei-me em frente do porta-contentores Tollan, virado no Tejo. O meu pai andava preocupado com a fábrica de blocos de cimento que decidira construir e com os empréstimos que pedira ao banco e ao IARN. Quando a Margaret Thatcher aparecia na televisão, ele dizia que devíamos ter uma mulher daquelas a governar o País.