Quando vivíamos na primeira casa de Luanda os cortes de eletricidade eram tão frequentes que já sabíamos o procedimento a seguir. Eu gostava do desassossego familiar que causavam, especialmente se já tivesse anoitecido. Ainda atarantados pela súbita escuridão, já um vizinho – quase sempre o Sr. Mário – gritava da janela, É geral, apesar de este geral corresponder à nossa correnteza de casas. Era bom que o corte de eletricidade fosse geral, significava que não estávamos sozinhos no contratempo, não fora um curto-circuito que nos podia ter avariado um aparelho ou a instalação elétrica, É lá deles, dizia o meu pai. Eles! Eles, quem? De quando em quando, a água também parava de sair das torneiras, os canos ficavam a gorgolejar numa aflição seca, até ela regressar escura como se tivesse andado pelo fim do mundo. O mesmo sucedia com o telefone que havia na mercearia e que os do bairro usavam, sempre muito atentos aos períodos marcados no contador: às vezes levantava-se o auscultador e nada. Luz, água e telefone formavam uma trindade que entrava nas nossas vidas de maneira misteriosa. Ainda não havia televisão em Luanda que me adensasse o mistério. Existiam só as antenas extensíveis dos transístores ou aquelas outras em formato de ridícula e finíssima cauda dos rádios de sala, que maravilhavam os ouvintes com canções e pessoas bem-falantes. De qualquer maneira, tudo o que o ar nos entregava, odores, poeiras, o prodígio da radiofonia ou esse outro maior, o de Deus, era-nos oferecido, ao contrário do que acontecia com as coisas sem as quais não podíamos viver. Eu sabia as regras do mundo: as coisas sem as quais não podíamos viver eram vendidas em lojas, se tivéssemos dinheiro podíamos comprá-las e levá-las para casa. O Sr. Manuel era dono de um talho onde se exibiam frangos com a cabeça ao pendurão e patas chamuscadas, o Sr. Tadeu tinha uma frutaria que até vendia mangas iguais às que caíam no nosso quintal, o Sr. Jaime era sócio do armazém de tecidos e roupas interiores. Empilhados nas traseiras das suas casas, esquecidos na rua, caixas, caixotes, sacos de plástico eram parte essencial dos seus negócios, um lixo enxuto. Com a luz, a água e o telefone era diferente. A luz era particularmente mágica. De onde vinha a luz que a patilha do interruptor bojudo acendia com um estalido? Eu tentava seguir o percurso dos fios e canos, mas eles desapareciam para dentro das paredes ou do chão, como se enraizassem a casa ou fossem as suas veias, e depois, na rua, os cabos aéreos emaranhavam-se uns nos outros, de nada servia afadigar-me a descobrir onde iam dar.
Havia sempre velas e fósforos na caixa do contador da eletricidade. Quando ficávamos sem luz, acendíamos velas e colávamo-las com cera derretida em pires. As chamas tremeluzentes agigantavam-nos os corpos contra a parede. Lá fora, um dos rapazes mais ágeis subia a uma árvore e não tardava novo grito, É só aqui. Ou se o apagão se estendesse ao bairro vizinho, Os outros também não têm. Ou mais raramente, Não há luz em lado nenhum. Neste caso, os adultos preocupavam-se. Quanto mais extensa fosse a falha, maior o problema, mais demorado o arranjo, Eles já não compõem isto hoje, vamos dormir, decretava o meu pai. Eles!