O convite veio do Miguel Fragata. Tinha em mãos o objetivo de pôr em cena O Pranto de Maria Parda, de Gil Vicente, 500 anos depois. Disse-me que tinha o coração cheio de dúvidas, porque se, por um lado, nunca tivera simpatia pelo autor, por outro parecia-lhe importante enquadrar aquele texto nos dias de hoje. Até porque fazia todo o sentido.
O Pranto de Maria Parda nasceu em 1521, no rescaldo de um ano de seca, fome e miséria. Maria Parda, mulher, andrajosa e alcoólica, vagueia pelas ruas de Lisboa em busca de vinho, incapaz de reconhecer a cidade, desfigurada pela desgraça. Quinhentos anos depois, no rescaldo de um ano de pandemia, de isolamento, de ruas desertas e falências, mas também de contínua gentrificação e segregação espacial, parecemos ter dificuldade em reconhecer o (nosso) mundo.