Capicua

Meio século após o lançamento de Novas Cartas Portuguesas, livro censurado em 1972 pelo Estado Novo, que o considerou “pornográfico e atentatório da moral pública”, originando uma contestação internacional de alcance inimaginável num mundo não globalizado, a VISÃO propôs a três autoras deste tempo que, inspiradas pela herança de Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa, voltassem a escrever sobre a condição das mulheres: o que foi feito desde então, o que falta fazer, o que ainda é preciso mudar. Alice Neto de Sousa, Capicua e Filipa Martins tomam a palavra, em textos exclusivos que aqui publicamos – e que são também uma homenagem à liberdade conquistada

Mesmo em prosa, fui descobrindo o meu ritmo, recorrendo a repetições para imprimir cadência aos parágrafos e ensaiando jogos de palavras, metáforas de potencial gráfico e até uma novilíngua particular

Consta também da listinha que sempre quis ter um diastema (aquele espaço entre os dentes) como a Madonna. Sei que há quem chame a isso dentes de mentiroso

Revolta-me especialmente que seja tão comum ser vítima de maus cuidados de saúde no processo de gravidez e parto em Portugal

A primeira manhã de creche deu direito a semana e meia de ranho, tosse, falta de apetite e febres ocasionais, sempre em casa. A segunda, mais uma semana de molho

Como se trouxe a figura de Maria Parda das ruelas sinuosas da boémia para o centro da praça pública, da invisibilidade para o microfone, da indigência para a dignificação

O nosso velho prédio foi, em boa hora, renovado. Infelizmente, com o acrescento de um mamarracho metido-a-moderno, que tapa toda a fachada lateral

Apesar de já não ter a capacidade de ser feliz como só uma criança consegue, ainda sinto um enorme conforto cada vez que entro naquele portão

Tenho pensado amiúde que foi uma bênção ter sido adolescente na era pré-internet e redes sociais

Chegado o dia da estreia (garganta seca e pânico), confesso que não estando curada da síndroma do impostor, estou muito feliz por me ter metido nisto.

Em qualquer outra língua, perderia o elo com as minhas próprias cascatas de riso, ao ouvir o meu pai dizer palavras ao contrário, a minha mãe repetir a lengalenga do macaco ou a minha irmã trocar as sílabas

Esse exercício de fazer por puro prazer, sem objetivos, seguindo apenas o instinto infantil da alegria, é um ótimo antídoto para o cinzentismo da rotina e para a ditadura da produtividade

Fazer coisas que nos dão prazer, além do trabalho e da família, é uma necessidade inadiável e quase uma manifestação de rebelião

A nossa cultura mitifica a ideia de instinto maternal e de amor incondicional, precisamente para depositar nas mães toda a responsabilidade do trabalho reprodutivo e doméstico, sem ter de remunerá-lo

Falta-nos tudo. Força anímica, poupanças e capacidade de investimento, crença no Governo e seu irrelevante Ministério da Cultura e, sobretudo, esperança