As mulheres bebericam portos tónicos e fumam cigarros eletrónicos. Discutem política internacional, comparam preços de ginásios, conversam sobre criptomoedas, vão sondando os caminhos deste mundo. Os homens, na cozinha, discutem pontos de cozedura, relatam idas matinais a mercados de peixe, debatem caris. Um dos homens pede um jeitinho a uma das mulheres, passa um pano impregnado de produto de limpeza no tampo de vidro da mesa do pátio exterior. Outro dos homens contesta o método. Os dois homens discutem com toda a urbanidade e civismo a melhor forma de limpar um tampo de vidro duma mesa. A mesa já está limpa das marcas dos copos de porto tónico e da cinza do cigarro de uma das mulheres, a única que ainda fuma dos analógicos. A azáfama masculina na cozinha faz-se sentir, vem aí o jantar, bases para meter debaixo das travessas quentes, guardanapos, sirvam-se, sirvam-se, que isto frio não tem graça nenhuma, as mulheres conversam sobre a tensão entre a China e os Estados Unidos, parecem não comungar da urgência de se servirem com máxima prontidão dos tachos ainda fumegantes. Um dos homens passa creme hidratante nas bochechas duma das filhas, outro dos homens demonstra aguda e súbita curiosidade sobre o cosmético em questão, é das alergias, isto hoje em dia eles são alérgicos a tudo, é das porcarias que metem nas comidas, melhor mesmo é comprar tudo biológico, passam-lhes logo as alergias. As mulheres vão debicando os portos tónicos e discutem política, falam de negócios, isto agora já é só gelo, isto sobre os portos tónicos, não sobre os negócios. Um dos maridos reforça o copo da mulher com Dry White. Coentros só mesmo no fim, já fora do lume, diz um dos homens. As mulheres louvam a competência dos maridos na cozinha, qual delas terá o melhor cozinheiro em casa. Os filhos falarão um dia sobre as receitas dos pais. Os netos recordarão as famosas receitas do avô. As tascas não se chamarão mais “a cozinha da avó miquinhas”, vão-se chamar por exemplo “a tasca do avô Ricardo”. Os nossos filhos vão lembrar-se da forma como os pais limpavam tampos de vidro de mesas de pátio com panos embebidos no produto tal e tal. As mulheres perguntam o que é que há para sobremesa. Gelado caseiro, os netos guardarão como relíquia de família a receita do gelado de manga caseiro do avô. Será que os nossos filhos vão seguir as pisadas dos pais? Ou vão ser uns meninos da mamã, a fumar à mesa enquanto auscultam nos telemóveis a cotação das bitcoins e debicam portos tónicos, as mulheres de roda dos tachos a pedir se pelas alminhas algum deles se importa de ir buscar uma base para pôr debaixo da panela a ferver? Sei lá, nunca se sabe, isto o mundo dá muitas voltas.
(Crónica publicada na VISÃO 1470 de 6 de maio)