Depois do primeiro confinamento, alguém me perguntava se sentia a quarentena como especialmente criativa e se já andava a escrever um novo disco. Disse que não. Que ainda não sabia o que dizer e que, depois de tudo isto, a minha música teria de ser necessariamente diferente e que a arte em geral teria de espelhar de alguma forma este período de exceção, esta experiência transformadora. A verdade é que, quase um ano depois, ainda não me apeteceu fazer música sobre o que vivemos, por achar que ainda estamos no meio do turbilhão e talvez me seja necessário algum distanciamento, por pressentir que provavelmente não será um tema que queira abordar diretamente e que bastará o seu impacto em mim para que a minha escrita se transforme necessariamente, ou mesmo porque tenho escrito muito sobre estes meses nas crónicas, canalizando a maioria das angústias para a prosa e não para a rima.
O que é certo é que nos últimos meses já se foram sentindo os ecos da vivência em pandemia na música portuguesa, e prevejo que se acentue cada vez mais essa tendência. Com a impressão dos impactos da pandemia nas letras das canções que vão sendo editadas (contra tudo e contra todos), serão também elas a contar esta história no futuro.
Bárbara Tinoco dizia que “agora o mundo é um aquário” num tema chamado Se o Mundo Acabar, cujo vídeo foi feito com imagens caseiras de confinamento. Sérgio Godinho falou sobre o “novo normal” num tema com o mesmo nome, em que faz o retrato dos últimos meses e suas notícias tristes. Ana Moura, Branko e Conan Osiris enterraram o ano de Vinte Vinte num tema dedicado a todos os que padeceram com a tristeza do ano que passou. E os Linda Martini tentam espreitar o sol, na nesga de esperança de que tudo isto acabe, no mais recente single Horário de Verão. Haverá muito mais exemplos e ainda mais se pensarmos nos impactos pelo silêncio. Ou seja, pela forma como a sombra, que toda esta crise faz pairar no setor da cultura, vai engrossando a lista dos discos não editados e dos concertos cancelados, das mudanças de planos, das desistências…
Se o tempo está tão diferente, há muitas coisas que se tornam anacrónicas nas gavetas dos adiamentos. Há atualizações a fazer. Precisamente por tudo isto ser demasiado disruptivo para não mudar o rumo da arte. Para dar um exemplo, o muito adiado álbum novo da Gisela João sairá em poucos dias, com menos uma música. Era uma atualização minha da Casa da Mariquinhas (que nasceu nos tempos da troika para dar conta da crise, pintando a casa como devoluta), mas desta feita em modo hostel (para falar sobre o boom turístico de Lisboa). Acontece que a pandemia fez travar o fluxo dos viajantes, e a cidade que estava vibrante ficou deserta. Não fazia mais sentido manter a canção no disco. Será anacrónico até que o novo normal dê novamente lugar ao velho.
Por isso mesmo, apeteceu-me atualizar a letra uma vez mais, para que não deixe de acompanhar a nossa história, para falar da Quarentena da Mariquinhas. E como já não vai a tempo do disco da Gisela, decidi começá-la aqui (como aliás já aconteceu na versão anterior), com esperança de que se torne rapidamente desatualizada.
Foi num passeio higiénico que eu vi
A tal casa da saudosa Mariquinhas
Mas estava tudo fechado
E na porta bem colado
Um arco-íris pintado a purpurinas
Do capacho ao parapeito
Desinfetado a preceito
Fede a álcool e não será das ginjinhas
Que a farra está sem efeito e o passeio
Só se for com o Bolinhas
Estava tudo como manda a DGS
Álcool gel ao lado da campainha
Máscara na cara agora
Fica posta a toda hora
Até pra dar aquele bom dia à vizinha
Por um vírus malfadado
Está o mundo confinado
Sempre em casa como a velha Mariquinhas
Que só sonha com a data abençoada
Em que cheguem as vacinas
(Crónica publicada na VISÃO 1465 de 31 de março)