Votos contados, uma última reflexão sobre o crescimento do Chega. Um breve ensaio sobre o nosso amado Algarve, onde os turistas jogam golf, os imigrantes apanham fruta, os nacionais servem à mesa e a extrema-direita ganhou.
Disclaimer: proponho olhar para o Algarve como região onde problemas presentes em todo o território se revelam com particular clareza. Um espelho do País, não uma realidade à parte. Dito isto, depois do segundo texto seguido sobre a extrema-direita nas eleições, prometo sair à rua, arregaçar as mangas e escrever mais vezes sobre pardais e libelinhas.
Há duas ideias praticamente consensuais no estudo da onda internacional da direita radical: a ideia de que o crescimento destes projetos políticos capitaliza o ressentimento; a prevalência de um discurso que explora uma sensação de distância entre a política e a “vida real” das pessoas. Pois, olhemos para sul.
Com um PIB acima da média nacional e os salários mais baixos do país, o “Allgarve” – nome inenarrável de um plano de promoção turística (2006) – paga sozinho a fatura social do lucro que traz à nação. Não é de agora. A monocultura do turismo faz de um paraíso na Terra para visitantes um sequeiro de oportunidades para os residentes. Uma zona maravilhosa, todavia pobre, sem oportunidades, condenada à economia sazonal, à depressão no inverno, à partida dos jovens, à habitação precária, à gorjeta dos turistas. Um paraíso para todos, menos para quem lá vive. Ressentimento.
Sabemos, além disto, que o fenómeno do turismo de massas descontrolado gera, com o tempo, uma certa resistência entre os locais face a quem vem de fora (nós VS eles). Está estudado, de Barcelona a Varadero. O que se sente hoje em Lisboa ou no Porto conhecem os algarvios há décadas, num regime agravado de monocultura ao qual não podem escapar. A isto, somou-se um aumento significativo de trabalhadores imigrantes que transformou o distrito de Faro na região com maior taxa de residentes estrangeiros (perto de um quarto da população). O bode-expiatório favorito do Chega e da extrema-direita.
Além de bem-vinda e enriquecedora, esta imigração é essencial ao país – vários setores não sobreviveriam um dia sem esta mão-de-obra. É um facto. Contudo, o país falha em integrá-la, em especial às comunidades não-falantes de português que sustentam parte fundamental do setor agrícola, oriundas do Nepal, do Bangladesh, da Índia, do Paquistão. A inexistência de uma política de integração séria ergue um muro de desconfiança e medo entre a comunidade portuguesa e os trabalhadores imigrantes, entregues à sua sorte. O que se espera que resulte daqui?
Viver no distrito de Faro, de Portalegre ou Beja e acender o telejornal deve ser frequentemente uma experiência surrealista. A distância sentida entre alguém em São Brás de Alportel, imerso nas suas aflições, e o que lhe chega do dia-a-dia na Assembleia da República é a de duas realidades que não se tocam. Não é uma questão de distância física (ou a sensação não existiria em Lisboa). É a sensação de que a classe política não faz nada por si, reforçada por um ambiente mediático viciado na intriga e no escândalo. Se um ministro abre o telejornal, é porque se desbocou no programa da Nélia ou porque desviou um apara-lápis quando tinha 6 anos. Nada nas políticas públicas que, em 50 anos, transportaram Portugal da pobreza medieval para a modernidade (apesar de imperfeita e incompleta) é digno de cobertura. Ora, antes votar em quem faz carreira a dizer que isto é tudo uma vergonha. E, já agora, que não tenha o “tabu” de falar em imigrantes, na corrupção, nas taxas e taxinhas, que isto anda tudo a gamar, etc., etc. Já conhecemos a cassete. É preciso refletir, agir e comunicar sobre isto no espaço democrático.
Não me vou sequer alongar na grande ameaça estrutural do Algarve, a falta de água, sobre a qual já aqui escrevi – de novo um reflexo agravado do país. O custo das incontornáveis medidas de combate às alterações já é cavalo de batalha da extrema-direita internacional. E será aqui, também. Os sucessivos governos têm tardado em agir, sem perceber que para além do enorme preço ambiental, social e cultural virá o político.
Há que trabalhar nestas duas frentes, sem alarmes nem derrotismos: compreender e combater as razões do ressentimento; aproximar a política e a democracia das pessoas. Para impedir a destruição do sistema democrático pelos extremismos não adianta colar etiquetas. O conceito abstrato da democracia não interessa a quem se sente a passar as passas do Allgarve. Ou as passas de Portugall
Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.