Ainda a maratona de debates vai no adro, já se adivinha a tragédia: em 30 frente-a-frentes, não veremos discutida uma única ideia para a área da Cultura. Se estamos infelizmente habituados a ver esta dimensão estratégica e prioritária relegada à nota de rodapé, o formato dos debates não ajuda. Quantas horas teria de ter cada debate para se chegar a falar de Cultura?
Há dias encontrei entre uns peluches, junto a um contentor do lixo, uma edição impecável do “Germinal”, clássico de Émile Zola, e um DVD por abrir do Pat Metheny Group. Os peluches ficaram. Aquilo que à primeira vista parecia oferenda de um Deus todo-atencioso, tão ao encontro dos meus gostos que seria mentira, ou não fosse verdade, começou por me deixar alegre, mas logo apreensivo. Encontrar no lixo duas obras-primas intocadas é antes a metáfora pouco sofisticada de um Deus todo-preguiçoso para me deixar a pensar sobre o persistente desprezo geral pelas artes.
Num país com tantas inquietações ao nível daquilo que é básico – saúde, salários, cabazes alimentares – é natural que as visões dos partidos sobre o universo da dança contemporânea não estejam entre os fatores decisivos na hora de votar. Curiosamente, a evidência está plasmada em “Germinal”, o romance histórico deitado ao lixo, cuja história narra a dureza da vida dos operários no século XIX, as greves, o sindicalismo e a luta. Zola testemunhou na primeira pessoa a grande greve dos mineiros de Anzin – os quais, muito provavelmente, não eram dados à leitura. Em 2024, vivemos melhor, mas estamos na mesma: é consensual a ideia de que precisamos de Cultura “como de pão para a boca”. Só que, antes, precisamos de pão para a boca.
Já aqui critiquei o formato dos debates eleitorais. Não compreendo uma grelha televisiva que dá quinze minutos a cada candidato, três perguntas e ala que se faz tarde, e logo oferece horas intermináveis ao comentário sobre o mesmo debate. Alô, futebol? Tudo neste formato promove o espetáculo televisivo, onde uma conversa civilizada será sempre “morna”, aborrecida, e o golpe baixo será “disruptivo”, um pico de audiências.
Sob a pressa para espremer um programa em quinze minutos, ou doze com as interrupções, quem modera veste a assertividade de quem ali está para por os candidatos na ordem, pulso firme, “não foi isso que eu lhe perguntei”. Como se não bastasse, há uma certa insistência em questões sobre acordos parlamentares hipotéticos, resultados hipotéticos, que chegam a levar um terço do tempo. Sobram uns minutos para se dizer umas coisas sobre a saúde – que é o que importa, rezam as avós – e obrigado por ter vindo. Talvez numa hora de conversa chegássemos à Ciência, ao Ambiente, à Educação, à Cultura – e depois os analistas sintetizavam, em vez de ser ao contrário.
A Cultura pertence à lista das áreas estratégicas da governação geralmente percebidas como “secundárias”, por não estarem diretamente ligadas à necessidade “básica” como a entendemos – a alimentação, a segurança, na aceção da pirâmide de Maslow. Como, em 1885, nenhum mineiro tinha a obra de Berlioz entre as aflições principais, há quem, em 2024, não encontre pão para a boca no DVD do Metheny. Isto faz com que seja ainda mais necessário o compromisso governamental, cidadão e cívico, com a promoção dos vetores estratégicos para a evolução, a elevação e o progresso do país. A capacidade para dar resposta às inquietações mais básicas depende profundamente, ela própria, desse progresso coletivo, social e cultural.
A Cultura luta há anos por 1% do Orçamento de Estado. Talvez ajudasse começar por 1% do debate político.
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