Ainda se contam votos, mas já se lambem feridas. Do enorme crescimento do Chega na Assembleia da República, parece ter nascido uma ideia nova: compreender eleitores.
O crescimento voraz da extrema-direita nestas eleições é inevitavelmente um dos principais factos a apurar da noite eleitoral. Ao que tudo indica, a redução expressiva da abstenção (a mais baixa desde 1995) contribuiu significativamente para o fenómeno: o Chega conseguiu arrancar pessoas do sofá para ir votar. Não o explica na totalidade, obviamente. Parece haver consenso em torno da ideia de que o partido conseguiu mobilizar o “voto de protesto”.
O programa do Chega representa o ódio, o medo, o extremismo, o caos, a mentira. Partilho o desalento por ver este projeto político ganhar tração no 50º aniversário do 25 de Abril. Não partilho, ainda assim, a surpresa. O crescimento do Chega deve ser contextualizado no quadro de uma onda internacional de partidos extremistas e populistas de direita, que tem conseguido capitalizar o ressentimento e a revolta em todas as partes do mundo. A excecionalidade portuguesa neste contexto seria um absurdo.
Mais de um milhão de eleitores votaram no Chega. O partido de André Ventura ganhou com especial força entre os jovens (18-34, faixa etária à qual pertenço) e elegeu deputados em regiões tidas como bastiões da esquerda. Não caio na simplificação de ver aqui uma transferência direta de votos, mas antes algo que me parece paradigmático, já aqui o escrevi: em todo o mundo vemos este tipo de extremismos roubar à esquerda a personificação da mudança. Acho essencial que a esquerda reflita sobre isto.
Num cenário delicado para o país – e ainda muito incerto, dada a vitória curta da AD -, a reação dos políticos e opinion makers à onda de voto na extrema-direita tem insistido, aqui e ali, na ideia da compreensão dos eleitores. Por estranho que seja ver uma coisa tão básica apresentada como novidade, não é lapalissada: a rotulação apressada de quem vota no Chega tem, desde o início, caído em dois erros fundamentais: a demonização e a infantilização. Ambas passam pela desqualificação do eleitorado, ora moral, ora intelectualmente.
Como alguém cujo código de valores rejeita em absoluto o programa político do Chega, sempre me pareceu preguiçoso e ineficaz (acredito que mesmo contraproducente) desqualificar moralmente o seu eleitorado: é tudo uma cambada de fascistas. Basta, aliás, olhar lá para fora para perceber que centrar a crítica aos protagonistas da ultradireita – que são xenófobos, racistas, machistas e ultramontanos – no facto de eles serem xenófobos, racistas, machistas e ultramontanos não tem impedido ninguém de votar neles, a médio prazo. Não demonizar o eleitorado implica perceber que parte do seu ressentimento resulta de problemas reais, da precariedade real, da negligência real. Há que responder ao descontentamento com políticas públicas.
No lado oposto, há quem tenda a infantilizar este eleitorado como massa sem discernimento, incapaz de avaliar políticos ou programas, deixada à mercê dos oportunistas. Não é assim. Parte sabe perfeitamente no que vota – e muitos porque se revêm no discurso de ódio, no extremismo, no autoritarismo e numa visão reacionária do mundo que querem impor à sociedade. Depois, há quem vote no Chega por interesse económico, esperando beneficiar do seu programa de direita reacionária, como se vê pela lista de financiadores, onde estão grandes empresas e nomes ligados à elite financeira do país, bem conhecidos de todos. Não são os pobres abandonados do interior que financiam o partido. É assim em todo o mundo e sempre o foi com a extrema-direita. Infantilizar é um erro.
Há dezenas de teorias para explicar o voto no extremismo de direita. Suspeito que nenhuma responda sozinha. Independentemente das motivações, que serão várias, há que ver em cada voto um dedo do meio esticado ao sistema. Como sabemos, o Chega representa o pior do sistema, é financiado pelo sistema e composto por pessoas levadas ao colo pelo sistema, mas consegue passar por antissistema. É preciso mostrar que o seu projeto só significa um mergulho mais fundo e desbragado no que o sistema tem de pior.
E compreender o fenómeno, de facto, com vontade genuína. Há um dito que diz “quando um sábio aponta o céu, o tonto olha para o dedo”. Perante um milhão de pessoas a votar com o dedo do meio, há que saber olhar para o céu.
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