Nos últimos natais, tornaram-se populares as piadas sobre o encontro à mesa com o “tio fascista” ou a “prima comuna”. A uma semana da consoada, proponho uma reflexão sobre o significado destas personagens à luz do bestiário moderno.
Nota: consigo achar piada à ideia de que todas as famílias têm alguém, pelo menos uma pessoa, com quem nos é particularmente difícil gerar entendimento (alerta eufemismo). Não vim estragar-vos o meme. Sei que, para muitos, lidar com a família é um exercício diplomático de alto risco. Dito isto, acho a generalização deste estereótipo – o tal familiar que tem de ser posto na ordem – sintoma de um processo de balcanização em curso, com o qual perdemos todos.
Há dias, enviaram-me uma imagem em que a médica perguntava ao doente “tem algum histórico de doença mental na família?” e o doente respondia “tenho um primo que vota PS”. Não quero avaliar a laracha, mas o que ela significa: a ideia de que alguém é doente por votar num partido, sinal da mesma balcanização. No subtexto, está uma sociedade onde, cada vez mais, somos incapazes de ver em quem discorda de nós um ser humano racional, bem-intencionado, cuja visão resulta da sua experiência – diferente da nossa. Acreditar que quem discorda de nós tem um problema (intelectual, moral) é arrasar o grau zero da democracia. Infelizmente, para lá caminhamos.
Como alguém que tenta viver e conviver fora da bolha, vejo o debate político inundado de emoções primárias – raiva, nojo, medo, alegria, tristeza. Sabendo que as redes sociais nos levam a processar toda a informação com o filtro das emoções, sem nos apercebermos disso, é impossível não o relacionar com este fenómeno. A reprodução do filtro emocional-sensacionalista nos media tradicionais normaliza a inflamação como tom para qualquer debate. Se juntarmos à equação uma sociedade pouco informada, sem escola de debate cívico, e um clima social tenso, de frustração e crise, passaremos a relacionar-nos apenas com quem pensa tal e qual como nós. É isso que queremos?
Do Brasil pós-Bolsonaro, dos EUA pós-Trump – duas das sociedades mais polarizadas do mundo -, chegam-nos as histórias de incontáveis famílias, amizades e relações trucidadas pelo fanatismo político. Infelizmente, os populistas sabem muito bem como usar a raiva e o ressentimento para destruir toda a empatia, a solidariedade e a capacidade de nos amarmos, ou pelo menos respeitarmos, nas nossas diferenças. Tudo começa na desumanização do outro, da sua opinião, na legitimação da raiva, na destruição de qualquer plataforma possível de debate ou entendimento.
Pois não compactuemos. Não falo de tolerar ataques a valores fundamentais ou ideias sagradas para nós. O debate, com limites, é essencial. Falo de não nos blindarmos nas nossas certezas, a ponto de ver no outro um inimigo. A Humanidade parte do que temos em comum. Por mais atroz que lhe pareça a opinião do tal tio, ou prima, é pouco provável que a causa de todos os problemas do mundo esteja sentada à sua frente, a trincar filhoses. Concentremo-nos nas filhoses. Como estão? Já provou?
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