A propósito do julgamento do processo BES, que teve início no passado dia 15 de outubro, temos ouvido falar em “megaprocessos”, numa perspetiva crítica. Aponta-se, essencialmente, a morosidade da investigação e das subsequentes fases do processo (instrução, julgamento e recursos).
Antes do mais, importa esclarecer que este conceito de “megaprocessos” não existe na lei.
Na verdade, o Código de Processo Penal fala em “excecional complexidade” de determinados tipos de crime sem fornecer uma definição. Limita-se a indicar, a título exemplificativo, circunstâncias que podem conduzir à sua declaração, as quais se prendem, com o número de arguidos ou de ofendidos ou com o carácter altamente organizado do crime (artigo 215.º, nº 3 do CPP).
Sublinhe-se que a declaração de excecional complexidade é da competência exclusiva do Juiz da 1.ª Instância e pode ser determinada oficiosamente ou a requerimento do Ministério Público.
A Jurisprudência tem vindo, unanimemente, a estabelecer que o juízo da excecional complexidade depende do prudente critério do Juiz na ponderação de elementos de facto.
Mas que elementos de facto? Ora, em suma, referem-se ao tipo de criminalidade, às dificuldades de obtenção de prova, às complexidades da análise dessa prova e ao elevado número de intervenientes.
Explicando.
Muitas das vezes estamos perante complexos esquemas de criminalidade organizada, económico-financeira, cibercriminalidade, cometida de forma transnacional, com vários intervenientes (pessoas singulares e coletivas).
As matérias sob investigação são tão complexas que, não raras vezes, convocam o recurso do Ministério Público a assessoria e consultadoria técnica em áreas como urbanismo, engenharia, arquitetura, contabilidade, mercados financeiros, informática, etc.
A obtenção de prova impõe, muitas vezes, o recurso a mecanismos de cooperação judiciária internacional. Apesar do elevado esforço que tem vindo a ser desenvolvido no sentido de tornar estes mecanismos mais fluidos e mais diretos, ainda nos deparamos com variadíssimos constrangimentos decorrentes quer das diferentes línguas, quer dos diferentes trâmites processuais de cada país, que se traduzem na elevada morosidade destes pedidos. E, note-se que, por vezes, analisada a resposta das autoridades estrangeiras, surge necessidade de efetuar novos pedidos e o procedimento repete-se!
Ora, estando em curso a investigação, a análise sistemática e contínua da prova é crucial para que o Ministério Público, que tem a direção efetiva do inquérito, definir ou ir definindo o objeto do processo. Dizemos ir definindo, porque a investigação é dinâmica, o que significa que o esquema que se evidenciava no início da investigação poderá não corresponder ao que virá a ser vertido na acusação.
Na verdade, impõe-se ao Ministério Público fazer a triagem de um manancial de informação que é recolhida ao longo da investigação (imagine-se os terabytes de dados apreendidos nas buscas) e perceber qual o caminho a seguir.
Contudo, como devem calcular, este trabalho é hercúleo, uma vez que é multiplicado pelo número de entidades envolvidas, sendo necessário fazer a conjugação de todos os elementos de prova recolhidos, de modo a sustentar-se uma acusação em julgamento.
Ora, chegados a determinado ponto da investigação, é crucial perceber o que vamos separar e o que não podemos separar.
Como sabemos, o Ministério Público está sujeito ao princípio da legalidade e não pode decidir se investiga ou não. Ou seja, deparado com a prática de crime tem de investigar. A questão é: investigar no mesmo processo ou noutro.
Temos de invocar aqui o artigo 29.º do Código de Processo Penal que consagra a unidade e apensação dos processos sempre que haja conexão de processos.
E são variadíssimas as possibilidades de conexão: o mesmo agente tenha cometido vários crimes, o mesmo crime tenha sido cometido por vários agentes, vários agentes tenham cometido vários crimes em comparticipação, entre outras.
Claro que a Lei estabelece casos em que se pode fazer cessar a conexão e de ordenar a separação de processos (artigo 30.º CPP). A título exemplificativo: quando a conexão afetar gravemente e de forma desproporcionada a posição de qualquer arguido (nomeadamente no não prolongamento da prisão preventiva) ou a conexão puder representar um risco para a realização da justiça em tempo útil, para a pretensão punitiva do Estado ou para o interesse do ofendido, do assistente ou do lesado.
Poderíamos invocar este preceito para fragmentar os autos. Mas será que a separação de processos, ou melhor dizendo dos núcleos de factos sob investigação, é sempre a melhor opção?
Obviamente que a apreciação terá sempre de ser casuística, contudo, importa ter em linha de conta que fragmentar pode não ser bom, nem para o arguido, nem para a Justiça.
Imagine-se levar a julgamento um arguido que “burlou” 1000 vítimas, com o mesmo esquema, praticado através da internet. Seguramente, todos concordamos que fará mais sentido fazer um julgamento com mil inquirições do que mil julgamentos.
Imagine-se outra situação: Dez arguidos montaram um complexo esquema de fraude relativa a compras e vendas de veículos, no espaço da União Europeia, para evitar pagar impostos. Ao longo de dois anos constituíram cerca de cinquenta sociedades, onde repetiam o mesmo esquema criminoso. Pese embora a complexidade da atuação e do elevado número de sujeitos processuais, deverá ser melhor que o aludido esquema se demonstre de uma só vez em Tribunal, do que se repitam vários atos, aos longo de vários julgamentos, no decurso de vários anos, correndo o risco, até, de haver contradição de julgados, considerando que a produção de prova se realiza em audiência de discussão e julgamento e nem sempre se apresenta da mesma forma.
Por último, de salientar que os magistrados não têm um especial prazer em criar ou dirigir processos de excecional complexidade. Contudo, a digitalidade da sociedade atual e o crime sem fronteiras conduzem-nos a realidade complexas e realidades complexas traduzem-se em processos complexos, os odiados, mas necessários, “megaprocessos”.
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