Acabamos de saber o nome do próximo Procurador-Geral da República, que será o magistrado que presidirá e dirigirá a Procuradoria-Geral da República, o órgão superior do Ministério Público.
O Governo propôs e o Presidente da República nomeou um magistrado do Ministério Público, com reconhecido mérito e profundo conhecimento da estrutura desta magistratura.
Aplaudo a escolha.
Não só como magistrada, mas como cidadã, pois entendo que só um magistrado do Ministério Público poderá desempenhar cabalmente as funções de Procurador-Geral da República e garantir a autonomia do Ministério Público em relação ao poder político.
Além de poderes de intervenção processual e poderes relativos ao provimento de cargos superiores do Ministério Público, o PGR tem poderes de direção e fiscalização (a tal hierarquia que tanto temos ouvido na comunicação social).
Ao contrário da magistratura judicial, o Ministério Público tem uma estrutura hierárquica, estabelecendo a Constituição da República Portuguesa, no seu artigo 219.º, que os agentes do Ministério Público são magistrados responsáveis, hierarquicamente subordinados, e não podem ser transferidos, suspensos, aposentados ou demitidos senão nos casos previstos na lei.
Mas que hierarquia é esta?
Diversamente do que vários comentadores parecem dar a entender, a hierarquia do Ministério Público nada tem que ver com aquela existente na Administração Pública ou no Poder Local.
Olhando para a organização sistemática da nossa Constituição da República Portuguesa, claramente percebemos que o Ministério Público se enquadra no título V dos Tribunais (e não no título VIII do Poder Local ou título IX da Administração Pública), ou seja, pertence funcionalmente ao poder judicial do Estado, apesar de estar organicamente integrado na Administração Pública.
Julgamos ser este o motivo de tanta confusão e errada informação acerca da inserção funcional do Ministério Público.
Não é ao acaso que os titulares dos órgãos do Ministério Público se chamam magistrados.
Como bem demonstra Luís Sousa da Fábrica, no seu parecer “A Autonomia do Ministério Público no Novo Estatuto” (para cuja leitura remetemos), a qualificação como magistrados não é meramente honorífica ou convencional, mas antes decorre do facto de serem dotados de poderes de decisão autónoma e responsabilizante, de estarem vinculados a critérios de legalidade e objetividade, cuja atuação não pode ser condicionada, a não ser nos casos expressamente previstos na Lei. Concretizando num exemplo: finda a investigação criminal é o magistrado do Ministério Público que decide, sozinho, se há ou não indícios da prática de crime para prosseguir com o processo para julgamento. Não é necessário remeter a apreciação superior (como acontece, por exemplo, nos procedimentos camarários ou nos serviços de Finanças).
Note-se que os magistrados são dotados de elevada preparação técnico-jurídica especializada, possuindo, pois, autodeterminação decisória, em aplicação direta da Lei.
É esta autonomia dos magistrados do Ministério Público que restringe os poderes hierárquicos e se demarca do vínculo hierárquico da administração pública.
De resto, e também diferentemente do que acontece na administração pública, no Ministério Público, os superiores hierárquicos estão privados do poder disciplinar que compete exclusivamente ao Conselho Superior do Ministério Público.
Como vemos, tratam-se de hierarquias bem distintas.
Ora, é assim, balizado por esta dicotomia hierarquia-autonomia, que o magistrado do Ministério Público dirige os inquéritos-crime, com os limites estabelecidos pela lei (normas expressamente previstas na lei processual, v.g. Código de Processo Penal) e pelas diretivas, ordens e instruções emanadas pelo Procurador-Geral da República.
O Procurador-Geral da República tem vastíssimas competências (elencadas no artigo 19.º do EMP), contudo, foquemo-nos no poder de emitir as diretivas, ordens e instruções que não são mais do que o exercício do seu poder hierárquico.
As diretivas desempenham um papel fundamental na uniformização de procedimentos, garantindo ao cidadão que há uma intervenção padronizada, por parte dos magistrados do Ministério Público e são publicadas no Diário da República.
São variadas as diretivas emanadas pela PGR que conformam a atuação dos magistrados, passando pelos vários campos de atuação do Ministério Público (criminal, família e menores, cível, execuções, etc.).
Destacamos, título de exemplo, a diretiva da PGR n.º 1/2023 na qual se definem linhas orientadoras de atuação para crimes de investigação prioritária, para o biénio 2023/2025, em cumprimento da Lei n.º 17/2006, de 23 de maio (Lei-Quadro da Política Criminal); a diretiva da PGR n.º 1/2014 relativa aos procedimentos a adotar quando se determina a suspensão provisória do processo; a diretiva da PGR n.º 1/2016, no que diz respeito e especial ao requerimento para processo sumaríssimo; a diretiva da PGR n.º 5/2019 relativamente ao fenómeno da violência doméstica.
Esta última é paradigmática do exercício do poder hierárquico que temos vindo a falar. Não obstante não ser possível dar instruções, em concreto, nos inquéritos-crime, reiteramos, o PGR tem o poder de condicionar a atuação de todos os magistrados ao determinar se observem determinados procedimentos.
A diretiva da PGR n.º 5/2019 impõe, entre o mais, que se observem atos urgentes de modo a que o Ministério Público se pronuncie sobre eventuais medidas de coação e medidas de proteção à vítima, em 72 horas; estabelece casos em que é obrigatório que o Magistrado do Ministério Público promova a tomada de declarações para memória futura; define os termos em que deverá ter lugar a suspensão provisória do processo, determina se articulem as jurisdições criminais e de família e menores.
Em suma, pretendemos deixar claro que a hierarquia na magistratura do Ministério Público existe, vem sendo exercida, mas é distinta do vínculo hierárquico existente na administração pública.
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