Foi publicado recentemente pela Direção-Geral da Saúde o relatório das principais atividades levadas a cabo pelo Programa Nacional para a Promoção da Alimentação Saudável entre finais de 2019 e 2020. Nele descrevem-se as principais políticas públicas na área da alimentação e nutrição durantes estes tempos pandémicos. O documento é publico, pode ser encontrado no site da DGS, mas vale a pena sublinhar algumas surpresas.
A primeira constatação é a enorme diversidade de atividades realizadas nesta área durante estes tempos, o que significa que nem tudo a COVID19 levou e que em muitas áreas o SNS continuou a trabalhar e bem.
Outro dado curioso, tem a ver com a adaptação alimentar de muitas famílias à pandemia. 36,8% da população seguida reportou ter mudado os seus hábitos alimentares durante os primeiros 12 meses de pandemia, nomeadamente com menos idas ao supermercado, mais tempo disponibilizado para cozinhar e maior consumo em casa. Em alguns casos, houve aumento do consumo de doces, noutros, aumento do consumo de fruta e hortícolas. Mas se este maior consumo em casa (que pode ter vindo para ficar com o teletrabalho) remete para a necessidade de uma maior literacia culinária saudável, por exemplo nos bancos escolares e na formação de adultos, o consumo diário de hortícolas, fruta e pescado foi mais frequente nos indivíduos com um nível de escolaridade mais elevado e que percecionam a situação financeira do agregado familiar como confortável. Por outro lado, cerca de um quarto dos inquiridos reportaram um consumo de snacks doces de pelo menos 5 vezes por semana, sendo esta elevada frequência de consumo mais prevalente nos indivíduos mais jovens, com menor nível de escolaridade e com uma perceção mais desfavorável face à situação financeira do agregado familiar. Já sabíamos que a pandemia afetou de forma desigual as pessoas de diferentes classes sociais. Na área alimentar foi certamente o caso. O que nos remete para a necessidade de uma análise mais fina nestas situações e para uma intervenção específica nos grupos da população mais desfavorecidos em situações futuras.
Outros dados muito interessantes revelam que durante este período pandémico, cerca de 24% dos inquiridos teve acesso às orientações produzidas pela DGS na área da alimentação e destes, 79,8% consideraram-nas úteis ou muito úteis. Segundo o estudo, o acesso a esta informação foi mais frequente nos indivíduos com um maior nível de escolaridade, contudo, esta informação revelou-se mais útil nos indivíduos com um nível de escolaridade mais baixo. Estes dados relevam as dificuldades em chegar aos grupos da população para os quais o acesso à informação pode fazer verdadeiramente a diferença. Em tempos de fake news e de informação de muito má qualidade a circular, vale a pena identificar fontes informativas credíveis e um esforço adicional para desmascarar publicidade mascarada de informação de qualidade sobre alimentação saudável
Ainda sobre este assunto, Portugal possui desde 2019 uma lei inovadora no contexto europeu (Lei n.º 30/2019, de 23 de abril) que introduz restrições à publicidade alimentar dirigida a menores de 16 anos e que o PNPAS tem vindo a monitorizar desde 2020. Por exemplo, entre 15 de janeiro e 18 de março de 2021, o conteúdo partilhado nas redes sociais – Instagram® e Facebook® – de 54 marcas de produtos alimentares foi analisado coincidindo com o segundo confinamento nacional. As marcas analisadas foram selecionadas por incluírem produtos das categorias de alimentos habitualmente mais publicitadas para as faixas etárias jovens (crianças e adolescentes). Segundo o relatório, das cerca de 680 publicações analisadas, a grande maioria dos produtos publicitados não cumpre com os critérios definidos pelo perfil nutricional da DGS, ou seja, são produtos alimentares de pior qualidade nutricional, mas mesmo assim publicitados nestes formatos digitais. A redes sociais são hoje um espaço onde muitas crianças e adolescentes convivem diariamente, sendo ao mesmo tempo um espaço preferencial para a publicidade a alimentos de má qualidade nutricional. Espaços de ninguém, locais que acabam por escapar à vigilância de encarregados de educação e onde é necessária uma atenção crescente. A possibilidade de se utilizar a internet para estudar ou para complementar a atividade escolar presencial aumentou durante a pandemia e provavelmente veio para ficar. No passado limitamos a presença de publicidade a alimentos de má qualidade no interior das escolas. Mas com estes novos formatos de publicidade (muitas vezes pela mão de conhecidas influencers) a alimentação de menor qualidade entrou diretamente nos quartos dos nossos adolescentes. Este será um enorme desafio para pais e comunidades escolares no futuro.
A nossa paisagem alimentar está a mudar. Com a subida dos preços dos combustíveis e com a redução da produção de cereais imposta pela guerra na Ucrânia mais comida de má qualidade irá estar disponível e proporcionalmente a preços mais acessíveis. A alimentação saudável durante o próximo ano estará de novo sob pressão. Não é altura de baixarmos os braços.
Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.