É um clássico pavloviano em política: para apagar o efeito de uma notícia nefasta que marca a agenda, coloca-se a circular entre os jornalistas outra mais suculenta, passível de a substituir nas aberturas dos telejornais. A segunda engole a primeira, que por sua vez é abocanhada por outra e esta por outra e por aí adiante.
Habitualmente este processo de newsmaking resulta de uma guerra de opostos: o socialista denuncia o social-democrata, que bombardeia o Largo do Rato, que responde com um míssil teleguiado à São Caetano à Lapa, que acciona os meios terra-ar, enquanto o CDS se esconde, o Bloco e o PCP assistem da tribuna e o PAN, entre granadas e torpedos, reza para que no meio da guerra não haja vítimas civis entre a comunidade canina. Habitualmente, a tragédia acaba quando se atribui a culpa ao mordomo. E a roda volta a rodar.
No Sporting de Bruno de Carvalho acontece mais ou menos a mesma coisa, com uma diferença: o processo de construção de realidade começa e acaba nas paredes de Alvalade, como se o clube fosse ao mesmo tempo o agressor e o agredido, o algoz e a vítima, o denunciante e o denunciado, o violador e o violado, numa vertigem de loucura visceral que pede meças a qualquer pátio de um hospital psiquiátrico nas suas tardes mais exuberantes.
Só para falar nos últimos dias: o Sporting ficou fora da Liga dos Campeões no passado domingo. Notícia fresquinha. Na segunda-feira, já não se falava de Champions porque Bruno de Carvalho decidiu chamar jogadores e equipa técnica a Alvalade para lhes dar um raspanete, de que resultou uma suspensão que entreteve os jornalistas durante umas horas, até que Kim Jong-bruno saiu da academia no seu BMW e chamou ursos aos que falavam sobre a mesma na TV, porque afinal não havia suspensão alguma. Aliás, não havia nada. Um turista que o ouvisse falar acreditaria com facilidade que os jogadores foram a Alvalade para tomar chá com o Boss.
Ontem, terça-feira, a manchete era outra: o Sporting de Bruno de Carvalho está a ser investigado por corrupção. O Ministério Público desconfia de um esquema de compra de árbitros. A notícia durou poucas horas – alguém se lembra dela? – porque um grupo de alucinados invadiu a academia de Alcochete para distribuir, de forma aparentemente democrática, um conjunto de cinturadas, de cabeçadas e navalhadas por Jorge Jesus, Bas Dost, William Carvalho e restante plantel. A corrupção foi engolida pela tragédia. E esta foi triturada pelas palavras de Bruno de Carvalho, em declarações à televisão do clube: o que aconteceu “foi chato”, disse. A sério, Bruno? Foi chato?
O que aconteceu foi uma tragédia, um acto concertado de violência que humilha o Sporting e que envergonha Portugal. Não é preciso ser Einstein para interpretar a marcha dos acontecimentos. Bruno de Carvalho criou todas as condições para a sessão de pancadaria. A pressão sobre os jogadores. As críticas públicas. Os raspanetes privados. A porta do clube escancarada, em Alvalade e em Alcochete, onde só faltou servir um catering aos delinquentes para que se sentissem ainda mais em casa.
É vulgar dizer-se e escrever-se que futebol e política são farinha do mesmo saco. As consequências deste caso serão centrais para determinar se é mesmo assim. Veremos se, no fim da linha, haverá um culpado identificado, um agressor, mesmo que moral, condenado em tribunal, ou se, como sucede na política, vamos todos alegremente concluir que o que se passou foi, de facto, chato, e que temos de contratar um novo mordomo.