A minha relação com a VISÃO não é de agora. Assinante convicta há inúmeros anos, quis o destino que num entardecer invernoso fosse entrevistada para a revista num debate sobre os prós e contras da calçada portuguesa. Por já me ter insurgido publicamente (no meu blogue, entenda-se) contra a dita, representei a “fação anti-pedrinhas do demo”, tendo estado do outro lado do conflito um defensor irredutível da calçada.
Ora, sendo este um tema que gera sempre controvérsia, sobretudo porque, de forma redutora, se transformou numa guerrilha das utilizadoras de saltos altos contra a pobre tradição, coitadinha, esta será talvez a melhor altura para se opinar, uma vez que a calçada se tornou no menor dos problemas de quem anda nas ruas lisboetas. É que a nossa capital é, neste momento, um gigantesco e estridente estaleiro. Mas daqueles em que o responsável se ausentou por tempo indeterminado e os trolhas se apanharam à solta e fizeram uma festa com bebida à discrição, entretenimento de escola de samba e uma banda filarmónica de adolescentes sem supervisão adulta. Trocado por miúdos: vivemos numa loucura diária, em que arriscamos a nossa integridade e esfrangalhamos o sistema nervoso a cada 20 metros. Juro que esta semana me senti Vila Nova de Gaia nos Jogos sem Fronteiras, ao atravessar uma linha de elétrico em construção, tentando evitar uma rebarbadora e respetivo fio, contornando três polícias sinaleiros que calmamente observavam o rebuliço, esgueirando-me num espaço de 10 centímetros por entre dois autocarros com ganas de me esborrachar, e fazendo o resto do caminho até ao trabalho pelo meio da estrada. Em fila. Atrás de uma dezena de concorrentes das equipas de Santo Tirso e Angra do Heroísmo, num peddy paper em que tínhamos de fugir do passeio, bombardeado por gravilha e pingas que caíam de um prédio também em obras. Arrecadei 10 pontos para a minha equipa.
Isto leva-me a outra questão: já não se pode andar aprumada nesta terra. Saia travada? Dificilmente conseguiria galgar os obstáculos no Cais do Sodré. Cabelo arranjado? Para quê pentear-me quando vou andar aos pulos a desviar-me dos buracos? Calçado bonito? Só os chanatos me safam, com a quantidade de pó e lama em que tenho de chafurdar. Já vi apanhadores de lingueirão com as unhas mais limpas do que as minhas depois de uma gincana Rua do Arsenal afora. Quando finalmente consigo escapar a este caos inteira e sem precisar de gesso – desgrenhada, suja, com múltiplas entorses e uma valente camada de nervos – surge-me em todo o seu esplendor, com banda sonora de harpas celestiais, a calçada portuguesa, qual salvadora após as provações a que estive sujeita.
Cara VISÃO, venho por este meio alterar o meu testemunho: venham de lá essas fofas pedrinhas que juntas formam motivos geométricos amorosos. Pela calçada portuguesa, marchar, marchaaaaaar!